Crítica | Tell Me Why e o poder de escolha

Recentemente, foi lançado Life Is Strange: True Colors, para a alegria dos fãs. E se você gosta da série ou de aventuras gráficas, vale a pena conferir o “primo” de Life Is Strange, Tell Me Why. Lançado pela DONTNOD em agosto de 2020, o jogo atraiu a atenção e aclamação de crítica e público pela qualidade gráfica e narrativa cheia de representatividade.

Foco na História

Tyler e Alyson Ronan são irmãos gêmeos que passaram dez anos sem se ver, desde a morte de sua mãe. Agora com 21 anos, Tyler finalmente volta para a cidadezinha de Delos Crossing, no Alaska, e os dois devem decidir se vão vender a casa onde cresceram, enquanto procuram pistas sobre o que realmente aconteceu naquela noite.

A relação entre os irmãos é o coração do jogo, e algumas escolhas influenciam o estado dessa relação ao final. E não somente a relação de um com o outro, mas com o mundo também. Enquanto Alyson cresceu na cidade e faz parte da comunidade, Tyler ainda é visto por alguns como alguém de fora. Enquanto Tyler tem planos para o futuro, Alyson ainda está confusa sobre o que quer.

Tyler e Alyson Ronan, personagens principais de Tell Me Why. - Otageek

Apesar de aparecer apenas em flashbacks, Mary-Ann, a mãe dos gêmeos, também é uma presença constante, principalmente conforme vamos descobrindo o que aconteceu no período antes de sua morte.

A cidadezinha de Delos Crossing é um personagem à parte. Apesar de aparecer apenas em alguns momentos, conseguimos ter a sensação de cidade pequena, que é exacerbada pelos seus personagens e suas interações com os gêmeos. O nome faz referência à cidade grega de Delos, que na mitologia teria sido o lugar de nascimento dos deuses gêmeos Apolo e Ártemis.

A resolução do mistério acaba sendo um pouco previsível e o final pode deixar algumas pessoas desapontadas, mas casa bem com o que é construído durante a história.

Audiovisual

O visual do jogo com certeza vai agradar até os mais exigentes por gráficos. As paisagens geladas do Alaska estão sempre presentes ao fundo, deixando o ambiente com um ar meio mágico. Apesar de Delos Crossing ser uma cidade ficcional, evoca imagens reais da região.

Além disso, em vários cenários vemos também o artesanato das comunidades indígenas da área. Os ambientes internos também são bem detalhados. A casa dos gêmeos, em particular, tem inúmeros itens para observar ou interagir, e detalhes como fotos de infância ou desenhos de criança na geladeira.

Já no design de personagens, conseguimos ver as semelhanças entre os gêmeos e dos dois com a mãe, mas sem ser só o mesmo rosto com barba ou cabelo grande. E os outros personagens, mesmo os bem coadjuvantes, são bem diferentes entre si, aumentando a sensação de realidade do universo do jogo.

Um elemento do jogo bem interessante é o Livro dos Goblins, composto por histórias contadas pela mãe dos gêmeos e ilustradas por eles quando eram crianças. O livro é usado para resolver alguns enigmas e para saber um pouco mais do passado dos gêmeos e de sua mãe. O jogador tem a possibilidade de usar o livro apenas quando necessário ou ler tudo, e cada detalhe foi pensado cuidadosamente e dá a impressão de realmente estar folheando um livro infantil.

A trilha sonora, criada especialmente para o jogo pelo compositor Ryan Lott, é bem melancólica, o que dá o tom triste e nostálgico de várias cenas. O jogo também conta com músicas de bandas independentes, que combinam bem com o visual proposto.

Livro dos Goblins, elemento importante de Tell Me Why. - Otageek

Representatividade

“Tell Me Why” é o primeiro jogo de um estúdio grande a ter um personagem principal trans jogável. Os desenvolvedores tomaram bastante cuidado ao desenvolver a identidade de Tyler, trabalhando com a organização GLAAD (organização americana que luta pelos direitos LGBTQIA+) e também com August Aiden Black, ator trans que fez a dublagem do personagem, para se certificar de que a representação dele fosse realista e respeitosa.

O resultado é uma boa balança entre colocar a identidade de gênero de Tyler como um fator importante para seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que não é o único fator. Tyler é um homem trans, mas sua personalidade e sua história não se resumem a isso. O jogo também tem o ponto positivo de falar com naturalidade sobre aspectos como terapia hormonal, uso de binder e mastectomia. E durante o jogo, Tyler tem a opção de se relacionar com Michael, amigo de Alyson, o que o torna também um homem gay ou bi.

Algumas pessoas, no entanto, podem achar a representatividade do jogo “segura demais”. Em alguns momentos, certos personagens demonstram opiniões transfóbicas sobre Tyler, mas é mostrado como ignorância de cidade pequena e resolvido depois, o que alguns jogadores consideraram fora da realidade. Mesmo assim, o jogador tem a opção de decidir se Tyler vai agir de forma mais negativa nesses momentos, ou deixar passar e depois perdoar.

Os nativos do Alaska também têm bastante presença no jogo. Michael e Eddy, os dois personagens que mais aparecem, são dublados por atores indígenas, e o jogo também contou com o apoio da organização Huna Heritage Foundation para se certificar de que os elementos da cultura e a linguagem presentes no jogo fossem tratados respeitosamente, e contrataram artesãos indígenas para criar os objetos mostrados no cenário.

Além disso, a saúde mental dos personagens também é um tema presente em “Tell Me Why”. É mencionado que Tyler passou por terapia durante seu tempo na instituição em que cresceu, e Alyson sofre de ansiedade e em alguns momentos do jogo tem alucinações e ataques de pânico. A resposta a isso é orientá-la a procurar apoio psicológico, e realmente, em um dos finais, temos a confirmação de que ela está indo à terapia.

Porém, um ponto um pouco controverso é a representação da polícia. Eddy, pai adotivo de Alyson, é o chefe de polícia de Delos Crossing, e nos momentos em que visitamos a delegacia durante o jogo, vemos que ela considera o lugar como uma “segunda casa” e temos contato com outros policiais: Greggs, um homem branco com opiniões conservadoras, que novamente são mostradas de forma a passar a mensagem de que é uma boa pessoa com mentalidade de cidade pequena, e Denise, uma mulher negra LGBTQIA+.

Levando-se em conta a violência da polícia americana contra grupos minoritários, sendo a população indígena um grupo que sofre bastante com isso, parece uma escolha um pouco estranha para um jogo que toma tanto cuidado em proteger seus jogadores.

Jogabilidade e Escolhas

O jogo tem três capítulos, de aproximadamente três horas de duração cada, tempo que pode ser maior ou menor caso o jogador escolha explorar todo o cenário e as possibilidades de diálogo, procurar colecionáveis ou não.

A jogabilidade pode se tornar fator contrário para algumas pessoas. Como geralmente acontece nesse estilo de jogo, mais focado em escolhas da narrativa do que em ação, a jogabilidade consiste apenas em andar pelo cenário e interagir com alguns objetos. Ocasionalmente, o jogador deve resolver um enigma para descobrir detalhes sobre a história de Mary-Ann, mãe dos gêmeos.

Dois elementos da história acabaram sendo subutilizados: primeiro, ao se reencontrarem, os gêmeos recuperam o poder de se comunicar mentalmente, inclusive enquanto falam com outras pessoas, algo que achavam que era só imaginação quando eram crianças. Mas isso ocorre apenas em alguns momentos do jogo e as conversas entre os dois acabam não afetando muito a história.

Tyler revendo uma memória em Tell Me Why. - Otageek

Outro ponto é o poder que os gêmeos têm de rever memórias da infância, que promete ser um dos aspectos principais de “Tell Me Why”, mas também acaba não tendo seu potencial totalmente desenvolvido. Grande parte do jogo consiste em rever essas memórias para descobrir os segredos do passado, e em alguns momentos precisamos escolher as memórias de Tyler ou Alyson.

Isso gera o conflito de escolher em quem acreditar, e o questionamento se, afinal de contas, o que importa é o que realmente aconteceu, ou o que cada um acredita que aconteceu. No entanto, somente o último desses momentos de escolha, no clímax do jogo, acaba tendo alguma consequência. Além disso, sem dar muitos spoilers, essa escolha final é um pouco contraditória, o que pode deixar alguns jogadores frustrados.

Conclusão

Com mais acertos do que erros, “Tell Me Why” é um jogo excelente. Como é fácil de jogar, mesmo quem não é fã de videogame, ou não está acostumado, pode se divertir com a história como um “filme jogável”. Com certeza, você também vai se apegar a esse universo e aos personagens e vai querer saber o final da história de Tyler e Alyson.

“Tell Me Why” está disponível para Xbox One e PC. Inclusive, agora também pode ser jogado pelo serviço XCloud.

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Luana Roque
Luana Roque

Tradutora apaixonada pela cultura pop em geral. Leitora assídua, amante de terror, viciada em séries e filmes e ruim no vídeo game.

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