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Lamb – Uma Tenebrosa Fábula de Natal | Análise
Lamb tem dado o que falar pelos fãs de filmes de pós-terror, mas mesmo aqueles que curtem o gênero parecem desdenhar e se perguntar: “Onde está o terror?” Bem, assim como A Roupa do Rei de Roma (não, galera, não é o nome de um filme), nem todos conseguem perceber. Não venho aqui fazer uma crítica, mas uma análise do filme. Se você não quer spoilers, só leia depois de assisti-lo.
Diversos são os subgêneros de terror, assim como diversos são os subgêneros de qualquer gênero de qualquer forma de arte e não vou me ater a eles aqui. Poderíamos categorizar Lamb como folk horror e pós-terror, mas, novamente, não vou me ater aos gêneros aqui. Meu objetivo com o presente artigo é mostrar onde está o terror em Lamb.
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Como poderíamos definir o que é terror? Talvez – e apenas talvez – o elemento sobrenatural seja o fator determinante. E, por sobrenatural, me refiro tanto ao místico quanto a uma possível anomalia da natureza (ou raça desconhecida).
O filme começa e mostra durante boa parte do tempo o casal Maria e Ingvar em sua pacata e bucólica vida de fazendeiros no interior da Islândia, ou, como diria o cartunista Angeli em uma de suas HQs, em sua “vida besta”. Mas, ao contrário do urbanoide cartunista, o casal não parece nada insatisfeito com seu cotidiano, embora perceba-se uma certa tristeza no ar.
Onde está o terror?
Acompanhamos o nascimento dos carneiros (que pode parecer dantesco para os mais sensíveis e fofo para os amantes dos animais e da natureza) e ainda nos perguntamos o que há de tão terrível para Lamb ser taxado como “terror”. Mas o início do filme nos dá a pista do que virá pela frente. Aqueles que estão familiarizados com a estrutura de roteiro, principalmente o cinematográfico, sabem que a primeira cena do filme (ou ao menos o início) costuma ser a síntese do enredo.
Percebemos que algo observa os belos cavalos felpudos que habitam o lugar (já que vemos pelos olhos do observador, em primeira pessoa) e eles se assustam. Logo em seguida, os carneiros olham para a porta como que percebendo a chegada de alguém… ou de alguma coisa. O barulho feito pela porteira faz com que todos os carneiros olhem, além de ouvirem uma respiração rascante.
A fuga dos carneiros por uma pequena fresta dá a ideia de um nascimento nefasto que está prestes a acontecer (já que a pequena fresta remete à imagem da vulva e os carneiros se esgueirando em fuga ao nascimento conturbado). Uma ovelha entra em cena, toda estropiada, e cai. Não por estar mutilada ou por ter sido espancada, mas como que exaurida após uma violação. E estou falando no sentido sexual mesmo.
Em meio à atmosfera lúgubre muito tênue, que só poderia nos ser dada por um filme europeu, o casal vive o seu dia-a-dia com diálogos insossos, leituras agradáveis, um pouco de TV e a lida na fazenda que, no caso, diz respeito a tosquiar ovelhas, dar de comer aos animais, dormir e acordar cedo e viver com quase total subsistência longe da cidade grande. E por “diálogos insossos”, não estou sendo pejorativo com as falas do filme ou com o cotidiano rural, pois o tradicional shit talking, como “Hoje está calor, né?” “É, mas parece que amanhã vai chover…” parece mascarar algo que os incomoda. Algo presente na vida (ou talvez na história) do casal.
Um dia, após um rápido shit talking matinal, o casal vai conferir os cordeiros e repara em algo diferente, que está estampado na maneira como Maria olha para Ingvar. Ela leva o pequeno cordeiro que acabara de nascer para dentro de casa e ambos passam a tratá-lo como um filho. Então você, espectador – atônito – se pergunta: “Por quê?”
Mas a pergunta não é respondida e um outro dia na vida da família (o tempo passa de forma tão sutil que o abrupto não é percebido) nos dá outra pergunta: como Ada – sim, porque o cordeiro ganhou um nome humano e agora sabemos se tratar de uma fêmea – foi parar fora de casa e está com sua mãe biológica? Maria ralha com a pobre mamãe carneiro e continuamos sem entender o porquê de terem tirado o seu filhote e o adotado.
Começamos a perceber que há uma carência do casal em relação a um filho. Talvez uma criança que tenha morrido ou talvez não tenham conseguido ter herdeiros por um dos dois ser estéril. Mesmo assim, por que adotar um filhote de carneiro?
“Ah, não! Não acredito!”
Isso mesmo! A partir deste momento, o espectador é aturdido por esta cena bombástica: o bebê é um híbrido humano! A partir daí, ou o espectador exclama exatamente o subtítulo deste parágrafo de duas formas – negativa: “Ah, não! Não acredito!”, desiste do filme, desliga a televisão e vai fazer outra coisa; ou positiva: “Ah, não! Não acredito!”, levantando-se da posição confortável em que se encontrava, recostado enquanto mastigava pipocas para assistir ao resto do filme curvado para frente, roendo as unhas, pois percebe tratar-se algo realmente sobrenatural. E por “sobrenatural” me refiro tanto a algo mágico, místico, demoníaco, quanto a uma anomalia da natureza, posto que o termo “sobrenatural” significa o natural exaltado.
Esse momento encerra o primeiro capítulo do filme, pois se trata de um roteiro pontuado como em Cidade de Deus, Os Olhos de Minha Mãe e O Violino Vermelho, mas isso não compromete a narrativa como um balde de água fria, já que o ritmo do filme é esse mesmo.
Temos agora a chegada de mais um elemento à trama, representado pelo carro se aproximando e, novamente, vemos pelos olhos de quem dirige, assim como no início da película, quando vemos pelos olhos daquilo que aflige aos cavalos. Ambas as cenas visam mostrar que um novo elemento estranho está para entrar na vida do casal.
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E está aí a genialidade de Lamb que muitos não entenderam: as “rimas” entre uma cena e outra; as pistas sutis que nos são dadas para que identifiquemos os elementos sobrenaturais e o que de nefasto está por vir, conduzindo o espectador ao que será explicado mais tarde.
E por falar em conduzir: quem estava no carro? Pétur, o irmão de Ingvar, que chega de carona no lugarejo. E por “de carona”, estou sendo sutil, pois a cena demonstra claramente que ele foi desovado* no lugar de uma forma nada delicada, o que já diz quem é o personagem, embora ele ainda não nos tenha sido apresentado.
*Dispensar o cadáver ou os restos mortais da vítima. Também usado como gíria para deixar alguém num lugar de forma abrupta.
O pesadelo de Maria com os carneiros já nos dá a ideia de que algo errado foi feito por ela; se não contra a natureza (já que roubaram o filhote de carneiro de sua mãe), ao menos a própria natureza foi maculada por algo nefasto. A imagem dos carneiros olhando para nós espectadores com olhos brilhantes, amontoando-se uns sobre os outros, assemelha-se bastante a algumas cenas presentes nos quadrinhos de Hellboy.
Mais uma vez, a estrutura de roteiro se dá de forma não ortodoxa, como citei no terceiro parágrafo: “para aqueles que estão familiarizados com a estrutura de roteiro, principalmente o cinematográfico”; mas, desta vez, refiro-me a cenas que parecem não ter serventia. Na maneira mais ortodoxa de se realizar a decupagem do roteiro, a triagem das cenas é realizada na Escaleta, onde o(s) roteirista(s) define(m) o que tem serventia ou não.
Nos quadrinhos de Hellboy, por exemplo, muitas vezes nos deparamos com cenas que parecem não ter função alguma, mas que servem para nos ambientar à atmosfera da trama, ou mesmo para gerar gestalts que passam ideias de forma pictórica, que ficarão impressas no inconsciente de quem as lê.
Após o pesadelo e ao ver que a mãe biológica de seu bebê híbrido insiste em ficar berrando ao pé de sua janela, Maria decide matá-la, e aí está mais um link para o desfecho fatídico. Qualquer pessoa que não seja um desalmado vai se apiedar da mamãe ovelha e considerar sua atitude uma atrocidade. Mas na cabeça de Maria, ela pensa estar fazendo a coisa certa, já que defenderá seu bebê com unhas e dentes, ou, no caso, com uma espingarda.
Pétur, por sua vez, demonstra claramente estar perturbado com a situação e questiona tanto seu irmão quanto a esposa em momentos distintos e em separado um do outro. Chega a oferecer capim para a menina Ada (no decorrer da trama, vemos que o nome do bebê é o nome da falecida filha do casal) e é severamente repreendido por Ingvar. Não satisfeito, convida sua “sobrinha” para dar um passeio e pensa em matá-la com a mesma espingarda, mas sua consciência fala mais alto; ou talvez o hibridismo a torne minimamente humana aos olhos dele.
Como citei no décimo primeiro parágrafo, a chegada de Pétur demonstra que ele é problemático, tem a moral dúbia ou, num bom carioquês, é um vacilão. Isso fica claro quando tenta, mais de uma vez, beijar a esposa de seu irmão. A segunda tentativa a faz crer que é hora de mandá-lo embora, por mais que Ingvar o tenha dito que poderia ficar o quanto quisesse. Mas Maria o faz sem alarde, não apenas para que Ingvar não perceba, mas acredito que o temperamento islandês não seja tão colérico quanto o nosso.
Enquanto Maria leva Pétur para o ponto de ônibus, Ingvar vai dar um passeio com a filha, mal sabendo que terá um encontro fatídico com o verdadeiro pai da criança: um ser humanoide, também híbrido de carneiro, mas com ambas as mãos humanas, enquanto Ada possui a mão direita em forma de pata.
A criatura desfere um tiro no pescoço de Ingvar, que agoniza, deixando Ada desolada, porém esta não reluta em dar a mão a seu pai biológico. Justiça poética acompanhada de um gesto humano, já que o híbrido não lança mão de seu lado animal para agredir o humano, mas o faz com suas próprias mãos – humanas.
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Em dois momentos, Ada percebe não fazer parte do mundo humano, como quando olha para o quadro repleto de carneiros nas paredes ou quando se olha no reflexo d’água, numa cena que revela sua visão distorcida de si mesma, como a famosa cena do espelho quebrado, revelando o caráter problemático e fractal do personagem que se olha no espelho partido. “Lolzeiros” se recordam do personagem Jhin, o Virtuoso?
“Onde está o terror?” Aqui:
Para começar, Maria é a mãe do cordeiro (lamb), sendo que o “Cordeiro de Deus” é um dos epítetos de Jesus Cristo. O nome original do filme em islandês é Dýrið, que significa “o animal”, sendo Dýr “animal” e “ið” o elemento de identificação (como o artigo definido “O”), mas isso não chega a comprometer a ideia central, que é a blasfêmia implícita no filme. Dýrt também significa “caro”, “querido”, já que o animal é muito querido por ambos.
Três cenas com janelas têm mensagens implícitas. O carneiro com os maiores chifres olhando pela janela na noite de natal mostra que uma concepção satânica está ocorrendo. O Natal é o nascimento de Jesus e o carneiro é muitas vezes associado ao diabo. O momento astrológico em que o Natal ocorre se dá no período concernente ao signo de Capricórnio. No Tarô, dos Arcanos Maiores, as 22 cartas principais, 3 são relacionadas aos Elementos, 7 aos Planetas e 12 aos Signos Zodiacais. E Capricórnio, a 15ª carta, é relacionada a’O Diabo.
Na mesma noite da concepção “maldita”, Maria está de vestido vermelho, olhando por uma janela cujas ripas de madeira formam uma cruz. O vermelho de seu vestido se dá explicitamente pelo Natal, mas implicitamente pelo simbolismo com o sangue. A cena rima com a cruz no cemitério contendo o nome de Ada, a filha falecida do casal, que aparece novamente olhando por uma janela cuja tinta vermelho-sangue está carcomida, o que passa mais ainda a ideia de sangue e de que algo fatídico acontecerá entre eles. No caso, a morte de Ingvar.
Licantropia?
Se olhássemos por um viés não esotérico, poderíamos imaginar que o bode humanoide seria um licantropo. O termo vem da fusão de Lykos (lobo) e Anthropos (homem) e designa o mito do lobisomem, segundo a lenda de Licaón (também chamado Lycaon, Licaonte ou Licaão), rei de Arcádia. Mas o termo passou a designar não só a fusão de ser humano com lobo, mas também com todo o tipo de animal, haja vista a enfermidade psiquiátrica que leva o nome de licantropia, na qual o indivíduo pensa ser um animal.
Aqueles que estão familiarizados com o universo de Storyteller e World of Darkness e conhecem o RPG Lobisomem: O Apocalipse sabem que os Garou (o termo que designa os lobisomens no jogo) podem se reproduzir entre seres humanos (gerando os Hominídeos), com os lobos (gerando os Lupinos) e entre eles (gerando os Impuros).
As demais raças metamórficas também possuem essa faculdade, sendo que os Rokea, os “tubarãozomens”, só se reproduzem com tubarões, nunca com humanos, assim como a tribo dos Garras Vermelhas de Lobisomem, os mais “xiitas” dentre os Garou, já que tanto eles quanto os Rokea abominam a raça humana. Se o bode humano de Lamb fosse um licantropo, ele poderia ter se reproduzido com a ovelha para gerar Ada e talvez ela desenvolvesse a outra mão mais tarde. Mas isso é apenas uma especulação.
Espero que aqueles que lerem este artigo vejam (ou revejam) Lamb com outros olhos e não deixem de curtir o Natal por causa disso. Que o Cordeiro os abençoe, Otageekers. Afinal, seu coautor é Sjón, que colaborou com algumas músicas da cantora Björk. O Otageek lhes deseja, portanto, um feliz Natal e um ano novo que será próspero com certeza, já que Sjón também é coautor de Northman, que sairá ano que vem e terá no elenco Willem Dafoe, Nicole Kidman e Björk como uma bruxa eslava!
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