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Crítica | Amor é uma Faca no Coração – Mubi
Terror queer, Faca no Coração está disponível no catálogo do Mubi e é um presente para os fãs de terror italiano dos anos 70.
Lançado no Festival de Cinema de Cannes, Faca no Coração é dirigido por Yann Gonzalez, estrelando Vanessa Paradis como a protagonista Anne Parèze na França dos anos 70. Portanto, é fortemente inspirado nos Giallo (terror italiano) dos anos 70, mais especificamente em diretores como Dario Argento e Lucio Fulci.
O cinema de terror, principalmente nos Estados Unidos, tem passado por um momento em que sua inspiração se encontra no passado. Temos Jordan Peele pegando elementos dos filmes de terror negros dos anos 70 e 90, enquanto Ari Aster constrói um cinema inspirado nos diretores Roman Polanski e Robin Hardy.
Aqui mesmo no Brasil tivemos o recente Bacurau, calibrado com uma mão pesada de John Carpenter na direção de Kleber Medonça Filho. E é por estar no meio dessa onda misturada de influências que Faca no Coração consegue ser um prato cheio para quem admira essa mistura de clássico com contemporâneo.
A história de Faca no Coração centra Anne Parèze, uma produtora de filmes pornô que passa a ser assombrada por um mistério quando seus atores começam a ser assassinados. Anne também está passando por um término muito difícil de um relacionamento longevo, enquanto cria ideias para mais filmes.
O longa de Yann Gonzalez vai se desdobrando conforme a trama acompanha a evolução de Anne dentro dos assassinatos. Apresentada como uma protagonista deveras egoísta e mesquinha, Anne manipula todas as pessoas que estão perto de sua presença, até mesmo sua ex-namorada.
No primeiro contato que a câmera cria com a mulher, já é mostrada a influência que ela tem. É um telefonema para sua ex-namorada, através do qual tenta arrancar algum afeto, fazendo com que a moça ceda a seus desejos e reate o relacionamento. Porém, quando a ex-namorada demonstra-se resiliente sobre a manipulação de Anne, a protagonista vai se tornando cada vez mais agressiva.
Essa falta de escrúpulos de Anne cria um paralelo interessante entre o assassino e a própria protagonista, uma vez que conforme o filme vai avançando nos detalhes, ela tenta arranjar formas de lucrar com a morte dos atores que faziam suas produções. Mas o descontentamento dos próximos vai deixando Anne cada vez mais abalada e pensativa.
Conforme ela vai avançando em uma narrativa ditada pelo seu próprio egoísmo, começa a perder sua sanidade e seu senso moral, principalmente quando um de seus amigos mais próximos é assassinado. A personagem começa a buscar por respostas, incluindo a da polícia, que parece não se importar.
Na busca pelas mesmas, então, ela vai tentar encontrar algum porto seguro no colo de sua ex-namorada, que a rejeita. Assim, a protagonista acaba se tornando o assassino de sua própria vida, jogando pela janela todo resquício moral em sua mente numa tentativa de forçar a própria namorada a fazer sexo.
Encontrando uma protagonista tão crua dentro de Faca no Coração, a trama não busca nenhuma redenção para Anne ou tenta recompensá-la. Na verdade, Faca no Coração se mostra um título bastante complexo dentro da trama, porque o principal tema que o roteiro de Yann Gonzalez e Cristiano Mangione busca tratar é o amor… ou a ausência dele.
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Na primeira cena de Faca no Coração, a direção de Yann Gonzalez abre mostrando a sala de edição de um filme pornô, alternando com uma sequência em um clube noturno gay com o ator estrela do pornô sendo editado. Conforme a cena avança, ele é assassinado no seu quarto, com uma faca no formato de pênis.
Toda a abertura dita como vai ser o longa: como um corte. Lois, ex-namorada de Anne, corta um filme, enquanto o assassino está cortando a pele de um ator. Mas além desse corte gráfico, o roteiro corta o coração da protagonista através dos diálogos.
Há um grande preparo para a ruína de Anne em Faca no Coração. O roteiro trata de abordar cada vez mais o quão inapropriado é o ambiente retratado, com diálogos bem curtos, mas que deixam um ar de desconforto conforme Anne conversa com as pessoas ao seu redor. Até mesmo quando a escrita toma um tom mais lúdico e poético, ainda há uma certa melancolia retratada nas falas desconfortáveis.
E por falar em lúdico, a direção de Yann Gonzalez torna Faca no Coração uma experiência bem diferente. Gonzalez toma suas inspirações em Dario Argento quando cria um contraste entre diferentes tons de azul e o vermelho sangue. O anil tem diferentes propósitos na lente de Yann: enquanto o azul claro busca retratar frieza, a tonalidade do azul neon ou oscuro traz perigo. Entretanto, o vermelho sangue sempre representa a morte.
Yann também demonstra mais de Argento utilizando a trilha sonora composta por M83, com um forte uso de sintetizastes e um toque de rock anos 70, algo similar ao que é apresentado pela banda Goblin na trilha sonora de Suspiria, porém sem perder a própria identidade.
Lucio Fulci também se encontra presente na ambientação proposta por Yann, optando por perpassar no submundo gay da França dos anos 70, demonstrando as consequências da homofobia que os personagens sofrem.
A direção de Yann Gonzalez também vem carregada de símbolos e significados. Gonzalez mostra o amor como uma atitude feminina, enquanto sexo é atitude masculina. O diretor nunca mostra a protagonista fazendo sexo ou desejando alguém de modo carnal, ela sempre é vista remoendo seu amor pretérito. Quanto aos homens, são mostrados apenas nos sets de gravações pornográficas.
Nessas relações entre sexo e amor, Yann então aproveita para explorar visões diferentes sobre ambos os assuntos. Mesmo o sexo sendo masculino, a direção muitas vezes opta por uma gravação mais lúdica, mais fantasiosa, fragilizando o corpo masculino e observando as sensações do prazer. Outra vezes Gonzalez mostra o ato sexual de maneira mais bruta, violenta e punitiva, demonstrando como o sexo pode ser um instrumento de opressão.
Yann ainda mostra o sexo fetichista abordado no pornô de uma maneira mais engessada, mais cômica e não levada a sério por seu ponto de vista. Essas misturas sexuais em tela são a junção de três visões: a visão lucrativa de Anne, o punitivismo do assassino e a visão própria do diretor. Em algum momento, as três vão se misturando e ditam o objetivo confuso do submundo gay dos anos 70 abordado na trama.
Já o amor é desconstruído em tela, com Anne buscando incessantemente uma forma de se redimir ao sentimento, mas mostrando como a própria sabota suas chances de redenção. Assim, o filme não opta por buscar o mesmo clichê hollywoodiano no qual o amor vence tudo. Gonzalez mostra o sentimento como uma Faca no Coração.
Faca no Coração como título acaba abrindo significados mais interpretativos para a obra, o que não cria distinção nenhuma entre a protagonista e o assassino. O conceito do nome vai se misturando cada vez mais quando Anne investiga o passado do vilão, o que ajuda a trama a se aprofundar mais no perigo do assassino, que também é ligado ao amor nocivo.
Gonzalez ainda abre espaço para mostrar como a homofobia funciona quando Anne busca pela ajuda da polícia, mas é recebida com desdém e nem ao menos parecem se importar com a palavra da moça. Ainda mostra, através do assassino, como opera a homossexualidade reprimida e internalizada.
As cenas de morte também são ligadas ao sexo, cada uma tendo um significado diferente dentro do longa. A primeira mescla um tom violento com o lúdico, apresentando a proposta do filme, a segunda é mais violenta, a terceira respira um elemento mais fantasioso, a quarta acontece em um set pornô e é a mais gráfica, enquanto a quinta morte é por amor… cada elemento visual se mesclando e se encontrando.
O fato da quarta morte do filme ser a mais gráfica pode ainda ser lido como uma alusão ao que é o pornô. Algo bem explícito, bastante exagerado e muitas das vezes artificial, enquanto Yann mostra a vítima de garganta cortada, jorrando sangue, debatendo-se no chão de maneira bem engessada.
O filme também utiliza bastante de seus atores para mostrar seu intuito. Vanessa Paradis tem a tarefa árdua de encarar a protagonista, atenta aos detalhes que a direção de Yann e a escrita de roteiro pedem, formando um combo em cena que consegue aprofundar a linguagem da película.
Paradis passeia pelos devaneios de Anne, engajada na grosseria de sua personagem e fluindo para a raiva e a melancolia que a protagonista sente. Vanessa cria um estudo de personagem aqui, esvaziando-se cada vez mais conforme o longa avança e deixando apenas o medo que Anne sente por sua própria vida.
No fim das contas, Faca no Coração mostra as consequências do amor, do sexo e da homofobia na vida de pessoas que habitaram nesse submundo obscuro. Carregado por uma direção recheada de significados e aprofundada no próprio conceito, Faca no Coração é uma boa pedida para fãs de terror italiano e também para quem está buscando algo longe do cinema Hollywood.
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