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Crítica | “Cenas de um Casamento” (2021): vendo de camarote a novela da vida alheia
Remake da obra homônima de Ingmar Bergman, a minissérie “Cenas de um Casamento”, da HBO Max, atualiza visceralmente os conflitos apresentados pelo cineasta sueco em 1973.
Ingmar Bergman era, por natureza, uma alma torturada. Nascido em 1918 na Suécia em uma família extremamente rígida e religiosa, Bergman foi um dos mais prolíficos e influentes cineastas do século XX, valendo-se de suas obras audiovisuais para expurgar as questões espirituais, afetivas e morais que o atormentavam desde a infância. Através desse expurgo nasceram filmes e minisséries aclamados como Persona (1966), O Sétimo Selo (1957), Gritos e Sussurros (1972), Sonata de Outono (1978)… e Cenas de um Casamento (1973).
Refilmar Bergman é, para alguns, quase um sacrilégio. Contudo, o diretor Hagai Levi (In Treatment) não se acanhou: abordado por Daniel Bergman pela primeira vez há oito anos, a fim de comandar a adaptação estadunidense da obra, abraçou a ideia e logo se debruçou sobre a problemática central desta produção: como atualizar e manter a importância de uma obra já tão universal sem que ela se torne enfadonha e lugar-comum, ou ainda, sem que ela pareça meramente um afago para os anglófonos que não se importam sequer em ler legendas?
O resultado, que pode ser visto na íntegra na HBO Max, é sublime.
A minissérie nos apresenta Jonathan (Oscar Isaac) e Mira Levy (Jessica Chastain), um casal hétero moderno e, aparentemente, saudável. Jonathan é professor universitário, e Mira, uma gerente de produtos em uma multinacional. O casamento é colocado sob as lentes de um microscópio a partir de uma entrevista para uma pesquisa realizada por uma aluna de Jonathan, que busca investigar as razões do sucesso de casamentos heterossexuais monogâmicos em que a mulher, em contraposição aos papéis de gênero tradicionais, é a principal provedora; atrelando, portanto, o sucesso dos casamentos à satisfação das mulheres nestas relações.
Ainda que Jonathan, logo de cara, pareça ser a parte mais entusiasmada do casal, também é ele quem questiona qual é a definição de “sucesso” que a pesquisadora está usando, e é ele que, ao se definir na entrevista, em nenhum momento menciona que é cônjuge de Mira, ao contrário dela – e estes são dois pontos de partida interessantes para que o público observe o completo degringolar da relação dos dois a partir não do primeiro episódio, onde parecem apenas um casal bem estruturado com alguns tropeços na comunicação porém capazes de tomarem decisões grandes em conjunto; mas sim, do segundo, onde os personagens (e os espectadores) são confrontados com a razão dos conflitos da narrativa.
Filmada durante a pandemia de COVID-19, Cenas de um Casamento precisou ultrapassar vários obstáculos logísticos, mas lidou com eles da melhor forma possível ao incluí-los na trama de maneira orgânica: é perceptível que, exceto por uma cena na clínica no primeiro episódio, uma breve cena externa no quarto episódio, e algumas poucas cenas em locais diferentes no episódio final, a maior parte dos eventos ocorrem dentro do espaço muito bem delimitado da casa de Jonathan e Mira.
Esta limitação transformou a casa em um locus digno dos romances góticos do século XIX: um espaço onde não só os personagens habitam, mas que os habita de volta. Através do fantástico trabalho de design de produção e direção de arte de Kevin Thompson e Deborah Jensen, respectivamente, acompanhamos como a casa muda e sofre conforme os personagens em si também têm essas experiências, culminando nos episódios quatro, onde a casa é vendida e os papéis do divórcio, assinados; e cinco, onde os dois voltam, após dois anos, ao local onde construíram uma vida juntos, e refletem não apenas sobre as mudanças em si mesmos, como também sobre as mudanças naquele espaço físico.
A direção de Hagai Levi, ainda, opta pelo uso frequente de câmeras estáticas, com zooms in e zooms out, evitando cortes bruscos e incessantes, causando assim um efeito quase teatral, especialmente em cenas de discussão: o espectador não tem opção a não ser focar nas atuações e no texto da minissérie. Ficamos, de certa forma, como bem diz aquela cantora, vendo de camarote a novela da vida alheia.
Este efeito teatral está presente em outros aspectos da série, como as curiosas introduções em plano-sequência que acompanham os atores chegando no set, e servem não só como um comentário metalinguístico a respeito de como os dois personagens estão constantemente atuando em suas relações, como também como um aceno gentil ao criador da obra original: Ingmar Bergman, além de cineasta, era dramaturgo, e dirigiu mais de 170 peças.
Apesar das estruturas físicas e narrativas do teatro e do audiovisual serem completamente diferentes, e da reação e interação do público com as obras das duas mídias também o serem, a experiência de Bergman com os dois ambientes influenciou o seu trabalho em ambos os espaços (o texto incisivo e as atuações do já citado Sonata de Outono servem como exemplo). Inserindo estes pequenos vislumbres da produção, Cenas de um Casamento “força” o espectador a enxergar as estruturas físicas daquela obra fictícia, da mesma forma que um espectador de teatro não tem opção senão a de enxergar o espaço físico onde aquela obra se passa, o palco.
É impossível ser Bergman, ser Liv Ullmann ou Erland Josephson. Hagai Levi, Jessica Chastain e Oscar Isaac, cientes disso, não tentam alcançar a magnitude da obra sueca, e sim, trazer a narrativa de Bergman para o século XXI, com a inversão dos papéis tradicionais desempenhados por Johan (Josephson) e Marianne (Ullmann), e com o levantamento de questões pertinentes para as diversas configurações de relacionamentos interpessoais de natureza romântica que, como bem sabemos, sempre existiram, mas hoje são vistas, debatidas e aceitadas (vide toda a questão da não-monogamia, levantada especialmente no primeiro episódio). Se, conforme diz a lenda, a minissérie original suscitou uma onda de divórcios na Suécia quando foi exibida, esta aqui deve render pelo menos algumas sessões de terapia.
Mais do que um mero slice of life, Cenas de um Casamento é um coming of age, que leva o público a entrar na montanha-russa do relacionamento de Jonathan e Mira. E, se na última cena do primeiro episódio, Mira se abraça, sozinha, em uma maca de uma clínica, devastada e devastando consigo o público; no último momento do último episódio, após toda a jornada que vivemos com ela e Jonathan, talvez tendo crescido e mudado tanto quanto os dois (que, ao final da minissérie, assumem um o papel que o outro desempenhava nos dois primeiros episódios, em uma rima narrativa quase antropofágica), ela finalmente é capaz de retribuir o conforto que Jonathan lhe ofereceu por tanto tempo.
Assim, ela cita solenemente parte de um poema declamado pelo personagem de Josephson na minissérie original, em um último aceno metalinguístico, falando não apenas sobre aquele momento, mas também sobre o estado em que o espectador muito provavelmente está ao final da minissérie: “no meio da noite, sem muita fanfarra, em uma casa escura em algum lugar do mundo”. Afinal de contas, quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra, não é?
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