Crítica | “Assassino por Acaso” faz do acaso uma metamorfose

Brincando com a natureza humana, Richard Linklater transforma a casualidade em comédia maluca
“Assassino por Acaso” fomenta a ascensão do astro Glen Powell. Foto: Divulgação/Diamond Films

Há uma tradição insultuosa em olhar para determinados gêneros como algo distante da arte. Por essa perspectiva, as comédias do cinema mainstream encontraram na banalização do humor um terreno fértil para a replicação das concepções pejorativas. Mais do que em qualquer outro gênero, na comédia, há uma crucialidade em administrar a sátira, o timing e a escolha de atores que transformem a história de seus personagens em verdadeiros dramas, ainda que ela seja uma fabulação do ridículo. O espetáculo deve evitar se tornar um circo, ainda que a narrativa seja burlesca. “Morrer é difícil, mas não tão difícil quanto fazer comédia”, dizia Edmund Gwenn. “Assassino por Acaso”, por outro lado, faz-se aparentar acessível, graças à concepção artística de um realizador confiante no processo de criar uma farsa.

Richard Linklater é um cineasta que se destaca pela habilidade em explorar o cotidiano de maneira brilhante. Seus trabalhos anteriores, especialmente a “Trilogia do Antes” (1995, 2004, 2013) e “Boyhood” (2014), constroem um cinema que celebra o trivial, onde as relações humanas se tornam o ápice da narrativa, provocando reflexões profundas e criando obras que se assemelham a sessões de terapia. Assim como o cotidiano e os relacionamentos, o tempo é igualmente crucial em sua arte. A simplicidade da passagem dos anos, reflexo inevitável da experiência humana, gradualmente adquire um significado profundo para aqueles que consomem essas histórias. A autorialidade de Linklater em tais obras é responsável por transformar o ordinário em algo extraordinário, e se assemelha muito bem ao assassino de aluguel que desfruta dos próprios disfarces na busca pela autenticidade em “Assassino por Acaso”. 

Na exploração da subjetividade, “Assassino por Acaso” se assemelha à figura de Gary Johnson, um cidadão comum que se fazia passar por um assassino de aluguel para ajudar as autoridades a capturar criminosos, como retratado em um artigo do Texas Montly. Apesar de se fundamentar em uma figura real, “Assassino por Acaso” não se propõe a basear em fatos, mas sim criar sua própria realidade, abusando da imaginação em torno da figura do “Hit Man”. 

Isso se deve a Glen Powell, que também coescreve o roteiro com Linklater, e interpreta a figura de Gary Johnson, um professor universitário fascinado pela natureza humana. Ele divide seu tempo entre dar aulas, sua obsessão por pássaros e interpretar um assassino de aluguel fictício para quem busca seus serviços. É na ironia de uma fantasia subjetiva, a de “Hit Man”, que Gary se disfarça sob diferentes máscaras, cada uma distinta conforme o cliente. Enquanto atua como um agente infiltrado da polícia, as interpretações de Gary remetem a clichês do cinema e escondem o seu “eu verdadeiro”. Dessa forma, a imaginação desempenha um papel crucial na construção do protagonista, e ele mesmo está consciente disso ao incorporar a dualidade em sua interpretação de Gary vs “Hit Man”

“Assassino por Acaso” utiliza códigos de diferentes gêneros para contar sua própria história, incorporando elementos do noir e da screwball comedy, um tipo de farsa eficaz com crítica social, responsável por revelar os podres que se escondem nas convenções da boa sociedade. No entanto, o noir de Linklater se aproxima mais de uma comédia romântica, com o uso da voice over e a presença de um personagem que desafia os valores morais da sociedade. Sem uma definição clara de tempo, a comédia de Linklater é sagaz, ácida e sem vergonha de abraçar sua natureza genérica, renovando-se a cada ato por meio de uma narrativa fragmentada onde tudo parece destinado a dar errado.

Glen Powell e Adria Arjona protagonizam um jogo de sedução em “Assassino por Acaso”. Foto: Divulgação/Diamond Films

As convenções do noir são intensificadas com o surgimento da enigmática femme fatale interpretada por Adria Arjona (Madison), que busca contratar os serviços do falso assassino após ser vítima do marido abusivo. Através da encenação de papéis, Madison e Gary se envolvem em um jogo de sedução, onde o assassino performa um clichê charmoso e perigoso de si mesmo, uma versão que tanto ele quanto os outros desejariam que fosse real. Se Gary mesmo não é realmente quem parece ser no jogo com Madison, não há indícios sobre as reais intenções da femme fatale, que pode se revelar uma ameaça a qualquer momento ou apenas mais uma persona típica do gênero romântico. Ao performar, Madison e Gary agem de maneiras distintas, expressando os próprios gêneros que apresentam ao restante do mundo, conforme as conceituações de Judith Butler, que compreende o corpo como elemento fundamental da subjetividade, questão também posta em pauta no filme de Linklater. 

Provando que o “eu” é uma ilusão, um papel desempenhado diariamente e, também, questionando se de fato esse “eu” existe, Gary se reencarna em um só sob os diversos papéis que interpretou através da figura de “Hit Man”. Cada versão de si expressa com confiança, determinação e desejo, em uma narrativa boy-meets-girl. A essa altura, várias convenções tradicionais já foram rompidas. “Somos seres imutáveis ou mudáveis?”- questiona ele em uma de suas aulas. Em contraste com o moralismo, à medida que um crime surge e a dualidade de convergência entre duas personalidades performadas por Gary, ele percebe que, se até o universo não é fixo, muito menos ele próprio pode ser. 

Confira o trailer:

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Isabella Breve
Isabella Breve

Graduanda em Jornalismo, leitora voraz, amante da Sétima Arte e eternamente fã.

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