Como Vento Seco de Daniel Nolasco apresenta a cultura Queer do interior para o mundo

O vento seco e a baixa umidade do ar ressecam a pele dos moradores de Catalão. Nas quartas-feiras, Sandro, que trabalha em uma fábrica de fertilizantes,nada na piscina de um clube da cidade e passa a noite fazendo quebra-cabeças de paisagens. O protagonista leva uma vida pacata, até que a chegada de um novo morador na cidade muda sua vida gradativamente.

Protagonista andando sobre a linha do trem em Vento Seco
Quente, intenso, brasileiro, goiano e, acima de tudo, catalano!

O longa LGBTQIA+ dirigido por Daniel Nolasco foi um dos selecionados do Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, e indicado também a melhor filme no Prêmio Sebastiane. Vento seco confirma mais uma vez que o cinema nacional é poderoso e que devemos rever nosso olhar sobre produções brasileiras.


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Conhecendo Catalão

Antes de começarmos a falar sobre a narrativa do filme, é preciso conhecer um pouco mais sobre um personagem importante da história, que no caso é a cidade onde o longa se passa.

Se você é de alguma capital ou região metropolitana, provavelmente deve ter ouvido falar de Catalão nas últimas semanas devido a um vídeo que romantiza o trabalho infantil de uma criança comprando um relógio para seu pai, ou por ser uma cidade cuja economia gira em torno do agronegócio, pecuária e indústria.

A cidade apresenta um clima árido e de baixa umidade do ar na maior parte do ano, o que obriga as pessoas dessa região a terem mais cautela com as consequências de viver nessa localização do país. Se você esta se perguntando como sei tanto sobre o clima da região, é porque nasci e fui criado em Catalão.

Confesso que quando soube de um filme gravado e produzido na minha cidade, fiquei muito empolgado e curioso para saber que tipo de histórias iriam contar, quem seriam os personagens representados e como nossa cidade poderia ecoar para o restante do país e do mundo a nossa identidade, cultura e vivências.

Cenas dos bastidores com as câmeras
Nos bastidores das filmagens, em Catalão – GO (foto: divulgação).

Vento Seco não apenas conseguiu fazer isso muito bem, como movimentou a economia local, contratando pessoas da cidade para participarem da produção, e eternizou na sétima arte a cultura queer do interior, provando que existimos.

No filme, acompanhamos a vida de Sandro (Leandro Faria Lelo), que tem entre 40 e 50 anos, sendo uma pessoa reservada, calada e observadora. Ele é o nosso guia durante o filme, afinal, essa é a sua história.

Nosso protagonista mantêm uma relação estritamente sigilosa e sexual com seu colega de trabalho Ricardo, até que começa a ver mudanças após a chegada de Maicon à cidade, um homem que parece ter saído das ilustrações sensuais de Tom of Finland. O recém-chegado, então, começa a se envolver com Ricardo, despertando sentimentos obsessivos em Sandro.

O estado de Goiás ainda é uma região conservadora e retrógrada em determinados aspectos, o que faz com que infelizmente aLGBTfobia seja mais estrutural ainda nessa parte do país. Consequentemente, muitas pessoas vivem uma vida dupla, sendo comum homens se casarem com mulheres por pressão social e LGBTQIA+ passarem pelo processo de aceitação tardiamente.

Chega a acontecer até mesmo uma descriminação e segregação dentro da própria comunidade em relação àqueles que estão no front, como os gays afeminados e as pessoas transexuais.

Protagonista de Vento Seco ao lado da bandeira do Brasil

As dificuldades LGBTQIA+ no interior

Um outro aspecto importante do filme é entender como ele trabalhou todas as complexidades da representatividade em um meio tão conservador quanto o escolhido. Em determinado momento do filme, temos um diálogo entre Sandro e Ricardo no qual o primeiro fala sobre um professor que era abertamente gay e foi encontrado esfaqueado e morto no banheiro da sua casa.

O caso repercutiu na época, mas poucas pessoas foram ao velório da vítima ,com medo de serem associadas a gays ou impuros. Nessa cena temos a confirmação de como o meio social fez Sandro se sentir desconfortável em sua própria pele, e esse foi um dos fatores que fizeram ele se tornar uma pessoa reclusa.

A história citada no filme aconteceu com um professor chamado Lázaro e repercutiu bastante na cidade na época, acontecendo exatamente como é descrita no longa. Outro acontecimento semelhante foi o caso real de 2014, no qual o também professor Giovani de Souza foi morto a facadas e teve a casa queimada após o crime, para que possíveis provas fossem ocultadas. Quando vi ‘Vento Seco’ pela primeira vez, não deixei de notar a similaridade dos casos, que ficaram marcados pela ausência de justiça às vítimas.

A alta LGBTfobia em Goiás está associada à interpretação fundamentalista bíblica, somada à pregação de ódio sistemática de pastores, políticos e autoridades ditas conservadoras, as quais omitem ou minimizam esses crimes que acontecem na região. Sendo algo estrutural, essa intolerância acaba se tornando o combustível e a tocha para incinerar os LGBTQIA+, criando assim uma espécie de caça às bruxas no cerrado.

Dessa forma, os LGBTQIA+ de Catalão possuem códigos diferentes de comportamento se comparados aos de outras regiões, mas não são impedidos de terem e vivenciarem sua subjetividade. Subjetividade essa que acompanhamos de perto através do ponto de vista de Sandro em ‘Vento Seco’, a ponto de ficar difícil distinguir o que é real e o que é fantasia.

Fila para a balada

Não é de se surpreender que o diretor Daniel Nolasco tenha escolhido Catalão para contar essa história, principalmente por ter sido criado nessa cidade, com uma educação tradicional marcada pelo silêncio. Aqui, assuntos como despertar sexual e desejo são tabus para muitas famílias, especialmente o desejo homoerótico.

Claro que não podemos nos esquecer de que o sexo erótico e explícito no filme, por si só, já é uma ferramenta política forte contra o conservadorismo. Afinal, estamos tão acostumados a ver o corpo feminino explorado e subjugado em produções, que um pênis exposto em tela é o suficiente para incomodar algumas pessoas.

Como citado no começo do texto, o filme todo se passa através do ponto de vista do Sandro, que é um cara gay reprimido o qual vive numa cidade do interior e é fetichista. Ele é uma pessoa que consumiu esse fetichismo na sua época de descoberta sexual, consumiu essas revistas, esses filmes.

Assim sendo, o sexo é um elemento narrativo muito forte na sua jornada e ajuda a contar sua história. Como exemplo, a cena inicial na mata reforça essa ideia do sexo presente para contar a trajetória de Sandro.

Sandro sério mesmo com fogos de artifício atrás dele

Se Sandro viveu em uma época na qual vários assuntos que são discutidos hoje não eram falados, os personagens do Ricardo (Allan Jacinto Santana) e Maicon (Rafael Teophilo) cresceram em uma época mais livre, o que de fato reflete a realidade da comunidade LGBTQIA+ de Catalão.

Muitos jovens vêm para a região para estudar na Universidade Federal presente na cidade, e com o passar dos anos, aos poucos, foram criados espaços para que essas pessoas pudessem ocupar. Um senso de comunidade e progressismo foi instaurado, por mais que muita coisa ainda precise ser feita. Mas vamos focar no filme.

Análise da Produção

Sandro internaliza suas emoções e os seus desejos são refletidos e externalizados no que vemos em tela. Durante o filme, ele relata para sua amiga Paula (Renata Carvalho) que vem tendo sonhos estranhos e recorrentes com uma figura vestida de couro. Conforme o tempo narrativo do filme vai passando, Sandro começa a perder o controle de seus instintos e suas barreiras entre imaginação e realidade se tornam cada vez mais tênues.

Dois homens em cena erótica vestindo-se de couro

Para muitos, são imagens que não podem ser mostradas ou se quer filmadas, mas não podemos nos esquecer de que homens gays fazem sexo oral, penetram-se, ejaculam e, assim como os heterossexuais, alimentam as mais variadas fantasias sexuais.

Se esses elementos não são vistos como motivo de vergonha na vida da maioria, por que despertariam vergonha quando representados na arte queer?

Um outro fato interessante no filme é a atenção especial dada para transmitir a atmosfera árida e seca de Catalão. Frequentemente a umidade do ar é exibida em tela e, conforme as fantasias vão se tornando mais intensas, mais quente a temperatura fica

. Além disso, o uso das cores também colabora com a criação do ambiente. O mérito fica para o diretor de fotografia Larry Machado, o qual conseguiu fazer um uso criativo das cores, sendo frequente o uso de leads nos ambientes, e em especial o uso das cores roxo, rosa e azul.

Delírios de luxúria do protagonista em Vento Seco com o homem vestido de couro

O rosa é muitas vezes visto nas cenas em que Sandro está observando os personagens mais jovens ou demonstrando algum tipo de desejo. Enquanto isso, o azul e o roxo muitas vezes estão presentes em seus sonhos e fantasias, como vemos quando ele esta próximo da figura vestida de couro com uma caveira tatuada.

O azul alimenta a ideia de confiança e o roxo nutre a ambientação imaginária e fictícia criada. Ao final da jornada do personagem, entendemos melhor sua relação com essa figura que o “atormenta”.

Para colaborar ainda mais com a imersão, em ambientes abertos, urbanos ou próximos da zona industrial da cidade, foi aplicado um filtro meio alaranjado, que remete à grande quantidade de poeira presente nesses pontos de Catalão. Se você tem rinite e por acaso passará por aqui, não se esqueça do antialérgico. É sério.

Carro vermelho no meio do mato em Vento Seco

A trilha sonora do filme, que pode ser ouvida clicando aqui, é outro ponto alto da obra, que leva nomes desde French 79, conhecido por seus sintetizadores e batidas fictícias e futuristas, até o indie do artista Thiago Pethit.

Além disso, ‘Vento Seco’ respeita a música sertaneja local, que predomina no gosto popular da região, com nomes como Matogrosso e Matias e músicas como Baião da Saudade e Negue, da Maria Bethânia,as quais carregam a identidade lírica do Brasil.

Durante entrevistas para promover ‘Vento Seco’, Daniel comenta que muitas de suas descobertas ocorreram através de filmes. Ele então buscou trazer referências deartistas pornográficos dos anos 70 e 80, além de buscar essa estética fetichista em ‘Vento Seco’.

Dentro das inúmeras referências no filme, uma das principais remete a “Boys in the Sand”, que foi um dos primeiros filmes adultos LGBTQIA+ a encontrar sucesso no mercado mainstream. Encontramos também presentes no filme alguns elementos do cinema de Werner Fassbinder,um diretor e ator alemão que se tornou um dos mais importantes representantes do Novo Cinema Alemão.

‘Vento seco’ pode ser considerado um melodrama fictício que referencia inúmeras obras da cultura Queer. Com elementos do gênero Noar, o filme se torna uma produção muito bem alinhada com a mensagem que quer passar.

Ele tem um estilo de produção muito variado, com filmagens se entrelaçando entre planos longos e por vezes estáticos, com zoom nas expressões dos personagens, principalmente do protagonista.

Uma Obra que dá Vozes

Daniel Nolasco teve o cuidado de montar todo um elenco principal somente com artistas LGBTQIA+, como a querida Mel Gonçalves, que por muitos anos foi conhecida como Candy Mel, a vocalista da Banda Uó. Hoje Mel segue carreira solo e é uma figura trans importante dentro do movimento LGBTQIA+, principalmente em Goiás.

Temos também a atriz trans Renata Carvalho, conhecida por interpretar Jesus Cristo na peça ‘O evangelho segundo Jesus, rainha do céu’, a qual também faz a sua estreia no cinema em ‘Vento Seco’. O elenco possui outros nomes populares dentro da comunidade, e outros nem tanto, mas todos ainda assim importantes por terem colaborado com a produção do longa.

Vento Seco é Catalão em sua mais pura realidade, seja política, econômica ou social. É possível notar, em sua sutileza, as nuances que a vida proporciona para quem reside nessa região do país.

Protagonista de Vento Seco em um supermercado com uma cara séria e várias pessoas ao seu redor olhando com espanto para algo

E para fechar essa analise, queria levantar uma reflexão sobre o arco envolvendo a personagem da Paula (Renata Carvalho) e agradecer ao Daniel e sua equipe por terem lembrado de como é a vida no interior e como estamos expostos a situações de precarização de trabalho e a uma política coronelista ainda presa no passado. Nesse tipo de situação, funcionários são apenas números e pessoas podem ser substituídas facilmente, de forma predatória e sem escrúpulos.

Na trama, Paula é uma técnica de segurança que busca por melhores condições de trabalho para seus colegas e acredita que a força do coletivo é capaz de chamar a atenção dos engravatados que estão no topo da hierarquia dessas empresas industriais. Durante a história, um dos amigos de Paula e Sandro chega a perder a vida em um acidente, e não pude deixar de lembrar das pessoas que já conheci e perderam a vida da mesma forma.

E isso inclui jovens que por falta de oportunidades recorrem cedo ao trabalho rural e se submetem a situações de risco, como foi o caso do jovem Bruno Canedo, com quem já dividi salas de aula na infância em um colégio agrícola.

A crítica à política local está presente de forma sutil e, se você não prestar atenção no filme, pode perder um comentário ou outro, que mesmo em poucas palavras dizem muito. Esses comentários aparecem quando Sandro está indo ou retornando de seu trabalho e o radialista comenta sobre como a cidade se permitiu chegar no estado onde chegou.

Tudo é muito rápido e subentendido. Para quem não conhece, Catalão é uma cidade onde o rádio ainda é o veículo de comunicação mais próximo da população, então é comum que políticos criem suas rádios e programas próprios para garantir aprovação popular.

Não chegamos a ter uma conclusão ou desfecho desses problemas, pois eles são reais e transcendem a sétima arte. Resta à população de Catalão fazer uma auto-crítica e analisar bem quais são as funções de quem assume cargos públicos e quais os meios disponíveis para que a cidade prospere de forma harmoniosa, para que não cheguemos ao ponto de normalizar novamente uma criança tendo que trabalhar como engraxate nas ruas.

Espero que tenham gostado da leitura, pois para mim foi uma honra escrever sobre esse filme e ver um pedaço da história da minha cidade sendo retratada nos cinemas. Foi muito satisfatório e representativo… um tapa na cara do conservadorismo.

Confira agora o trailer de ‘Vento Seco’ e tome cuidado, pois a umidade do ar vai cair!

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Riuler Luciano
Riuler Luciano

Jornalista Cultural e Marketeiro, cresceu lendo quadrinhos dos X-MEN é amante de Cultura Pop e Pequi!

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