Amanita Design – um novo conceito de games 2D

O fino da antiga e vanguardista linguagem flash brotou no mundo há alguns anos – e vem da República Tcheca!

O fino da antiga e vanguardista linguagem flash brotou no mundo há alguns anos – e vem da República Tcheca! Fundada em 2003 pelo artista gráfico e game designer Jakub Dvorský, a equipe Amanita Design ressuscitou o gênero adventure no melhor estilo point-and-click do início dos anos 1990, mas de uma forma muito menos pretensiosa e com resultados até melhores.

Com diversas referências a HQs, filmes antológicos e mesmo outros adventures, a atmosfera bucólica de seus games contrasta com um certo clima lúgubre, criando o amálgama perfeito entre o singelo e o soturno, como o hiper-realismo surreal da escultora e artista visual australiana Patricia Paccini. Na verdade, a galera do Leste Europeu desenvolveu boas narrativas mudas, se me permitem o oxímoro, sem precisar recorrer à linguagem cinematográfica, dada a imersão narrativa proporcionada por seus games.

Imagem mostrando vários planetas e um Sol em algum jogo da Amanita.
Olha Viagem à Lua (1902) aí, gente… !

gameplay apresenta suas histórias em camadas, não necessariamente em curso linear, sem necessitar de uma narração ou de diálogos. Esses são apresentados em balões (mas com desenhos, que acabam sendo histórias dentro das histórias) ou na própria sequência lógica das cenas, e imagens que contam a história em doses homeopáticas, de uma maneira que chega a se assemelhar ao Kamishibai*.

O kamishibai japonês e sua representação em Botanicula, jogo da Amanita
O kamishibai japonês e sua representação em Botanicula

* Kamishibai – Teatro de rua japonês popular entre a Grande Depressão da década de 1930 no Japão pós-guerra até a chegada da televisão. Trata-se de um cenário improvisado com quadros ilustrados e miniaturas em papel sendo substituídas em sequência para se contar uma história.

Mesmo não havendo a possibilidade de se morrer durante os jogos, os personagens do universo da Amanita são carismáticos, as críticas sociais são passadas nas entrelinhas e os conteúdos mais adultos, embora explícitos, são inseridos de forma lúdica, contando belas histórias em ambientações bizarras.

Robô e sucatas em um jogo da Amanita
Se segura, robô… pra fazer a cabeça, tem hora!

Além disso, a música orquestra perfeitamente seus games e animações e, não por acaso, a equipe elaborou um jogo para o álbum Together we´re Heavy, da banda Polyphonic Spree. Também lançou o clipe da música Plantage, da banda dinamarquesa Under Byen, além de contar com a dupla de músicos experimentais DVA, que chega a encarnar dois personagens no game Botanicula.

Vamos conhecer seus principais games:

Samorost (2003)

O primeiro game da equipe conta a história de um personagem misantropo, embora feliz, que habita um pequeno asteroide nos confins do espaço. Uma espécie de Pequeno Príncipe pós-moderno.

ambiente com árvores e um casebre em Samorost, jogo da Amanita
O primeiro game da saga. Reprodução: Amanita Design.

Através de seu telescópio, o personagem verifica que um grande asteroide se chocará com o seu. Viajando numa lata de conserva improvisada como nave, então, nosso herói vai para o dito asteroide e aterrissa numa plantação de… bem, aperte o play e experimente.

Samorost 2 (2005)

No segundo episódio, o personagem conta com um cãozinho, adotado sabe-se lá onde. Uma dupla de alienígenas aterrissa no seu quintal para roubar frutas e o cãozinho começa a latir. A dupla, assim, sequestra o cachorro bem a tempo de o personagem assistir à sua partida.

ambiente com gramíneas e duas torres em Samorost 2
O sequestro do cãozinho: a Chamada para a Aventura. Reprodução: Amanita Design.

Desta forma, novamente munido de sua espaçonave-conserva, o protagonista deve ir atrás de seu animal de estimação. Ele então descobre que o cachorro foi sequestrado para servir de força motriz para o ventilador de um obeso que fica o dia inteiro zapeando na TV.

O alienígena sedentário em sua casa assistindo TV
O alienígena sedentário. Reprodução: Amanita Design.

A crítica é clara e implícita no próprio gameplay, no qual o personagem não se dá ao trabalho de se levantar nem ao menos pra expulsar o ilustre invasor de sua residência.

Referência do jogo da Amanita à história O Lento Barco para Vega
Referência do jogo à história O Lento Barco para Vega (Heavy Metal Brasil #18). Reprodução: Amanita Design.

Pra fechar, mostro uma referência do jogo à história O Lento Barco para Vega, do artista franco-iogoslavo Enki Bilal, publicada na revista Heavy Metal Brasil nº 18, em 1997.

Machinarium (2009)

Não há uma transição após a tela de abertura, pois ela já é a primeira cena do game. Tal qual o helicóptero que se aproxima gradativamente na introdução de O Enigma do Outro Mundo, um drone automático se aproxima e despeja os restos do personagem. Sua primeira missão é montar-se.

Um monte de sucatas no jogo Machinarium, da Amanita
O personagem desmontado. Sua primeira missão é tornar-se íntegro consigo mesmo. Reprodução: Amanita Design.

O game traz um sistema de cursores que lembra o do clássico Darkseed, de 1992, e sua concepção é bem próxima d’A Era Metalzoica. Escrita por Pat Mills (criador do Justiceiro 2099Sláine e um dos criadores de Juiz Dredd) e Kevil O´Neill (que desenhou A Liga Extraordinária e chegou a desenhar Lobo e Hellraiser), a HQ, assim como o game, traz não apenas uma sociedade, mas todo um ecossistema de robôs, como mostrado também no filme O Exterminador do Futuro: A Salvação.

Personagem sozinho em um cenário desértico, com um castelo à direita
O personagem e o início da Jornada do Herói. Reprodução: Amanita Design.

Com puzzles inteligentes e alguns difíceis, o primeiro longa da equipe é, talvez, seu melhor game, e o personagem ainda conta com vários movimentos comandados pelo jogador e necessários na resolução dos problemas. 

Há também a oportunidade de se jogar com um outro personagem em um dos quadros – a namorada do protagonista, assim como em seu predecessor, Samorost 2, no qual se joga com o cachorrinho. A história aqui não é contada de forma linear e há críticas ao bullying, bem como ao trabalho escravo.

Botanicula (2012)

O segundo longa contém elementos de todos os anteriores, com uma atmosfera mais viva e toda uma contextualização mais infantil. Desta vez, é possível jogar com cinco personagens: uma semente, um cogumelo, uma vagem, um graveto e uma folha.

Protagonistas do jogo em cima de uma árvore
Da esquerda pra direita: Mr. Lantern, Mrs. Mushroom, Mr. Poppyhead, Mr. Twig e Mr. Feather. Reprodução: Amanita Design.

Cada personagem possui uma habilidade diferente que deve ser usada conforme a necessidade e em determinados momentos do jogo, nos quais há a opção de se escolher entre eles.

A raça aracnídea sugando a clorofila em Botanicula, jogo da Amanita
A raça aracnídea sugando a clorofila(?) da Árvore da Vida. Reprodução: Amanita Design.

Assim como seu predecessor, MachinariumBotanicula nos apresenta um novo ecossistema, mas dessa vez de plantas. Após se alimentarem das Árvores da Vida, uma raça aracnídea começa a sugar a clorofila de todos os habitantes daquele universo, que parece diminuto. Sua missão é descer ao subsolo e cortar o mal pela raiz, ao eliminar o parasita acoplado a ela.

Samorost 3 (2016)

O terceiro capítulo da saga do Pequeno Príncipe tcheco deixa um pouco a desejar. Embora tente incorporar elementos dos games anteriores, o jogo peca pela monotonia e tentativa frustrada de dar continuidade à ambientação da série Samorost. Acaba ficando mais parecido com Questionaut, jogo feito pela equipe para a rede BBC.

Um homem em um barco, um tamanduá gigante e o personagem principal em Samorost 3, jogo da Amanita
O Monge e o Tamanduá. Reprodução: Amanita Design.

De caráter educativo sem ser didaticamente chato, em Questionaut o personagem vai ascendendo mundos cada vez que acerta cinco perguntas sobre matemática, física, geometria, biologia, interpretação de texto, etc.

Os balões "soprados" em Questionaut.
Os balões “soprados” em Questionaut. Reprodução: Amanita Design.

Se em Botanicula os personagens conversavam através de balões mudos que contavam histórias através de animações, como Machinarium fazia em preto e branco, em Samorost 3 o protagonista conversa da mesma forma, mas os balões surgem como em Questionaut, soprados. Ao completar o objetivo da fase, o personagem ascende a um asteroide superior, igualzinho ao game ENEM, da BBC.

Os balões "soprados" em Samorost 3.
Os balões “soprados” em Samorost 3. Igual ao seu antecessor, Questionaut. Reprodução: Amanita Design.

A tradicional nave latinha é substituída por uma nave cogumelo que deve ser montada na primeira fase (como ocorre em Machinarium), o que já descaracteriza o universo da trilogia. Assim como em Botanicula, o objetivo não é zerar o jogo, mas coletar todos os achievements.

A história também não é contada de forma linear e só se tem acesso à segunda parte do livro quando se resolve um determinado puzzle e se acessa o achievement correspondente à história.

Personagem principal ao lado de uma planta alienígena e seu cachorro
“Ah, eu queria pilotar aquele foguete do #1 e do #2, pô!” Reprodução: Amanita Design.

Mesmo terminando o game, ainda há a possibilidade de voltar aos mundos anteriores em busca dos achievements, que não são necessários ao desenrolar da história; bela, recatada e não linear, como todas as outras. Os puzzles são fáceis e muitos até desnecessários para a resolução da fase.

Chuchel (2018)

Este game segue ligeiramente a estética de Botanicula, mas é propositalmente mais tosco. Mais uma vez o roteiro não é linear e, pela primeira vez, existe a possibilidade de se tomar um caminho em vez de outros, como num antigo livro-jogo.

Personagem principal de Chuchel, jogo da Amanita
Chuchel: não precisava ser tão bobinho assim, né? Reprodução: Amanita Design.

O jogo conta com uma boa dificuldade, mas é no mínimo sem-graça em relação aos anteriores. Não conta com uma história coesa e nem se propõe a isso. Mas a ideia de fazer piada o tempo todo, com uma falsa ingenuidade maléfica, não funciona e o estilo f*da-se acaba passando a impressão de desleixo por parte da equipe.

Pillgrims (2019)

Esse jogo chega pra fazer jus ao talento da equipe. Um cabra danado, outro cabra brabo, uma mendiga, um padre e o diabo estão jogando cartas numa taberna. Você acorda com o cabra danado numa barraca de camping e sua missão é trazer um pássaro para um barqueiro que vai te levar sabe-se lá pra onde.

Personagens jogando cartas na taberna
Quatro dos que estão jogando te acompanham no game. Reprodução: Amanita Design.

Pillgrims desenvolveu todo o seu gameplay baseado em um puzzle da primeira fase de Samorost 3. O jogador tem cards à sua disposição, que simulam as ações dos personagens ao longo do game, podendo inclusive ser mesclados um com o outro como objetos em um inventário.

O puzzle de Samorost 3 (acima) e o gameplay de Pilgrims, jogos da Amanita
O puzzle de Samorost 3 (acima) e o gameplay de Pilgrims. Reprodução: Amanita Design.

Ao longo do game, você recruta outros personagens (todos peregrinos, como sugere o nome do game) e pode resolver as missões em diferentes ordens. Mas embora não haja uma ordem certa, há uma ordem. Não correta, porém mais prática. O jogo ainda conta com dois finais.

Creaks (2020)

Em Creaks, você passeia por um ambiente todo remendado, como uma ocupação ou uma grande habitação de mendigos, mas algo inverossímil, como convém aos games da equipe. A estrutura toda é um prédio de fazer inveja aos arranha-céus dos magnatas e nele habitam pombos (ou ao menos figuras humanoides antropomorfas com pássaros) intelectuais.

A comunidade arranha-céu de Creaks.
A comunidade arranha-céu de Creaks. Reprodução: Amanita Design.

Creaks retorna à atmosfera soturna dos antigos games com uma história que vai sendo contada (sem ser contada) de forma obscura, enquanto o personagem tenta sobreviver. Sim, porque, assim como é o primeiro game da equipe que não é point-and-click, também é o primeiro no qual se pode morrer.

A morte pelas mandíbulas de um cão-robô.
A morte pelas mandíbulas de um cão-robô. Reprodução: Amanita Design.

Durante todo o tempo, você está sob a iminência do “dragão” aparecer e sacudir a edificação, que já está caindo aos pedaços. E o jogo apresenta uma dificuldade superior à dos anteriores, principalmente dos últimos (é mais difícil até do que Machinarium). Até porque, mesmo com o continue sendo infinito, agora se tem a possibilidade de morrer.

Happy Game (2021)

Em seu lançamento, ainda sem data anunciada, Happy Game aposta na estética fofinha de Botanicula e Chuchel num game de terror! Isso mesmo! Ele possui referências ao game Neverending Nightmares, elementos de Lenore, a Linda Garotinha Morta e, às vezes, recorre à estética dos desenhos animados da década de 1930, como no game Cuphead.

Carinha feliz devorando as outras em meio a um sangue vermelho vivo em Happy Game, jogo da Amanita
É fofinho mas é sangrento… Reprodução: Amanita Design.

O protagonista, um garotinho (como em Limbo e Inside), passa por três horríveis pesadelos. O gameplay não fica claro, mas a proposta é bacana e o trabalho gráfico já se mostra bonito. Resta saber se a equipe Amanita Design vai manter o pique nos próximos games e animações. Ainda não joguei este game e, se for bom, vai brotar num próximo artigo aqui. ::)


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Claudio Siqueira
Claudio Siqueira

Escritor, poeta, Bacharel em Jornalismo e habitante da Zona Quase-Sul. Escreve ao som de bits e póings, drinkando e smokando entre os parágrafos. Pesquisador de etimologia e religião comparada, se alfabetizou com HQs. Considera os personagens de quadrinhos, games e animações como os panteões atuais; ou ao menos, arquétipos repaginados.

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