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Você não liga para os meus pesadelos: ‘I May Destroy You’, ‘Moonlight’, ‘Lovecraft Country’ e a solidão preta
Do meio para o final de 2020, a minissérie I May Destroy You estreou no circuito internacional e aos poucos foi chegando em terras tupiniquins. Mesmo não tendo sido um grande rebuliço na internet, o show encontrou a atenção da crítica pela sua forma em abordar certos temas sociais.
A série nos mostra a história de Arabella. Ela é uma autora que está chamando atenção na internet por causa de seu primeiro livro, mas sofre pressão para finalizar o seu segundo livro e o vender rapidamente. Em uma certa noite, depois do trabalho, ela sai para encontrar alguns amigos e, ao voltar de manhã, não se lembra do que fez.
Não demora muito para Arabella ter certos lapsos de memória. Daí ela se lembra de ser violentada em uma banheiro. Ela começa a lutar contra certas memórias, negar uma possibilidade de ter sido estuprada e então a ficha cai.
Conforme Arabella vai achando caminhos para se curar, ela vai desenterrando diversos problemas que nunca teve a chance de confrontar. Mas o problema principal a ser abordado nesse texto é: a solidão de mulheres e homens gays negros.
Conforme avançamos a narrativa, descobrimos que Arabella vem de um lar desfeito. Sua mãe possui alguns problemas depressivos, enquanto seu irmão não demonstra ser tão afetuoso e até mais agressivo, enquanto Arabella acaba sendo mais passional e engolindo alguns sapos para tentar encontrar uma falsa estabilidade mental. Mas seu pai é a figura do homem negro ausente que não ama a mãe de Arabella, também não demonstra qualquer sinal de afeto pelos filhos.
Automaticamente, a relação familiar desestruturada de Arabella cria um estigma na cabeça dela, pois todos seus relacionamentos acabam sendo problemáticos. Em algum momento da série vemos Arabella ligar para seu namorado e relatar o estupro e, ao invés de receber algum tipo de apoio, ela é recebida com criticismo e sua relação acaba.
Em oposição a deixar a relação ir embora, ela não consegue desapegar e volta atrás dele diversas vezes. Mesmo estando uma relação tóxica, onde ele alimenta seu vício e problemas com álcool e drogas, a personagem não consegue desapegar emocionalmente de uma relação que a faz tão mal.
Já seus amigos, Terry e Kwame, enfrentam um outro tipo de problema.
Terry é uma mulher negra de pele mais clara, o que a leva para meios nos quais é sexualizada e mistificada. Em um dos primeiros episódios da série, a vemos sendo convidada para fazer sexo à três, sendo que os outros dois homens eram brancos que ressaltavam sua fervente sexualidade exótica. Assim que Terry termina o ato, ela é deixada sozinha por ambos, então o jogo de câmera mostra o quão desconfortável ela esteve em toda situação.
Enquanto isso, Kwame, o amigo gay de Terry e Arabella, está sempre caçando por homens para se relacionar sexualmente no Grindr, (aplicativo gay para “relacionamentos”) sempre rejeitando qualquer tipo de contato afetivo além do sexo. Em algum momento, Kwame também é estuprado e não sabe como lidar com o ocorrido.
O caso dele chega ser muito mais delicado, por que existe uma construção social para com homens negros onde nós precisamos representar um certo tipo de padrão de gênero. Se olharmos no audiovisual, a representação do homem negro é sempre mais brutal, como é na série Lovecraft Country, que aborda essa perspectiva.
Lovecraft Country
Atticus, interpretado por Jonathan Majors, sempre está gritando com Letitia e com seu pai. Ele acabou sendo o primeiro homem com quem Leti se deita, mas a mesma não demonstra estar agradada com a experiência, uma vez que Atticus foi muito bruto com ela e a fez sangrar. Mas quando o personagem teve uma relação amorosa com Ji-Ah, uma mulher asiática, ele demonstrou ter muito mais afeto e amor por sua parceira.
Já o pai de Atticus, Montrose, também é um homem muito mais bruto, mas dentro de sua brutalidade ele reprime sua sexualidade e luta para se sentir confortável como um homem gay. Sua sexualidade acaba sendo motivo de discussão com seu filho, que o rejeita como homossexual e o reprime.
Porém, logo após descobrir que Montrose é um homem gay, Atticus automaticamente se lembra de todas as vezes que seu pai o bateu por não reproduzir um padrão de gênero “obrigatório” entre os homens negros.
Daí vamos para um filme muito popular que aborda essa questão de forma mais aprofundada: Moonlight.
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Moonlight
Dentro da atmosfera de Moonlight somos apresentados a Chiron, um menino que sofre bullying desde pequeno por não ser másculo o suficiente. Nas três fases de sua vida vemos como ele lida com sua homossexualidade, mas o observamos sozinho e não tendo com quem conversar sobre essas questões.
Chiron acaba se apaixonando por um de seus amigos, responsável por seu despertar sexual, Kevin, mas acaba sofrendo uma agressão do próprio quando Kevin tenta provar sua masculinidade para outros amigos.
Quando ambos crescem e amadurecem conseguem aceitar o espectro homossexual em suas vidas e decidem se relacionar. O que leva a uma das cenas mais bonitas do filme: dois homens negros e gays se aceitando e prontos para se amarem.
Realidade
A sexualidade preta é um assunto de muito tabu. Voltando para as raízes estruturais da escravidão, pessoas pretas não foram ensinadas a terem identidade. Angela Davis, em seu livro Mulheres, Raça e Classe aponta que durante o período escravagista mulheres e homens eram tratados como objetos e animais.
Dado a esse contexto, homens e mulheres pretos foram desprovidos de identidade, o que alimentou certos comportamentos de gênero dado a homens pretos. Portanto, a visão masculina de negritude é como a de Atticus, um homem negro que se nega a ter sentimentos, se nega a demonstrar qualquer fragilidade emocional.
Assim, a homossexualidade, transexualidade e a bissexualidade formam uma quebra de paradigmas sociais.
Os homens negros partilham da mesma dor, como Jay-Z afirmou em uma entrevista. O rapper ainda diz que após trair Beyoncé foi procurar ajuda. Nesse período ele desenterrou suas vivências como homem negro e percebeu de onde vem a violência do homem negro.
Vem da dor, vem da estrutura racista que continua sendo perpetuada. Contudo, para um homem negro, que sofre ainda com os reflexos da escravidão, demonstrar essa dor não é um sinal de resistência.
Então quando um homem como Billy Porter ou Lil Nas X surgem, ambos confortáveis com a homossexualidade, existe uma quebra de paradigmas muito grande por que eles não performam um papel de homem negro aceitável dentro da sociedade.
E é esse homem que não performa o estereótipo negro que vai sofrer dentro de uma norma.
O youtuber Murilo Araújo, do canal Muro Pequeno, afirmou em um vídeo com Nataly Néri sua dificuldade para encontrar afetividade dentro do movimento gay. Se um homem negro não performar uma virilidade sexual ele raramente será aceito dentro do movimento gay.
A negritude, desde a época da escravidão, está ligada ao que é carnal, ao instinto, ao selvagem. Sendo que a construção de amor, um sentimento mais suave, é muito mais sofisticado e longe da realidade de pessoas pretas que não são vistas como um interesse amoroso, como afirmou Nataly Néri no mesmo vídeo.
Indo de encontro com Arabella, Nataly falou que muitos de seus relacionamentos estavam pautados dentro da carência emocional, a necessidade de existir ao lado de alguém para se valorizar.
Historicamente, a mulher negra foi desumanizada, estuprada e posta em um papel no qual ela não é vista como digna de afetividade. O homem negro que é criado dessa mesma norma não verá a mulher negra como um potencial afetivo, ele irá buscar afeto na mulher branca.
Brancas já são vistas como delicadas, meigas e frágeis, sendo assim, o homem negro poderá cumprir seu papel social de homem, pois assim não estará lidando com uma mulher que pode e irá entender suas dores, podendo atingir os pontos fracos de seu gênero.
Nós negros ainda sofremos com o reflexo da escravidão, portanto esse reflexo é transformado em barreira que afeta nossas relações interpessoais, como é afirmado no texto “Tu palmitas, e nós preteridas”.
The Vampire Diaries
Mulheres negras em suas vivências acabam sendo sugadas e usadas de estepes para problemas emocionais de outras pessoas. The Vampire Diaries, por exemplo, sempre mostrou Bonnie Bennet como uma bruxa poderosa, mas ela teve sempre de servir como tokken para personagens brancos terem suas histórias desenvolvidas.
Em um episódio da série, na segunda temporada, é mostrado que a personagem começou a sair com um menino negro e que eles se gostam, mas em algum momento nos é revelado que ele apenas manipulava a garota para conseguir o que queria. Mais para frente da série, Bonnie começa a namorar apenas caras brancos e no fim ainda acaba sozinha.
The Vampire Diaries, por mais que seja uma série de fantasia, ainda reflete como a mulher negra é vista por pessoas brancas dentro da staff de roteiristas: não tem amor, não tem vida própria e não existe para além de ajudar pessoas brancas.
Até mesmo quando a mãe da Bonnie vira uma vampira, a protagonista liga pedindo favores que irão salvar a vida de pessoas que não se importam tanto com ela – leia-se Damon e Stefan Salvatore. Ambos sempre usaram Bonnie como uma tentativa de salvar Elena Gilbert e nada além de uma descendente de escravizadas bruxas.
Esse reflexo é pertinente com a vida da mulher negra real, uma vez que até Beyoncé apontou essa problemático em Lemonade. Mesmo sendo rica, bem sucedida e sempre tentando se abrir sobre suas dores, ela foi traída pelo seu marido e parece que foi por uma mulher branca.
Jungle Fever
O fenômeno pode ser explicado também pela Jungle Fever, um termo designado a relacionamentos inter-raciais paltados dentro de estereótipos raciais criados na época da escravidão.
O homem negro que ascende socialmente vai buscar por uma figura de ascensão social, ou seja, ele vai achar uma mulher branca para casar, ter filhos e crescer numa família. Isso não é tão errado assim, mas esses casais acabam servindo como base para discursos problemáticos como “amor não ter cor”.
Sim, amor tem cor, sim!
Uma vez que esses homens cresceram e não levaram suas parceiras pretas de antes com eles. Não é possível esses homens verem suas parceiras pretas como ascensão social. O assunto é debatido no filme Jungle Fever de Spike Lee.
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Experiência pessoal
Agora vindo para minha experiência pessoal como homem negro e gay, pretendo finalizar este texto de uma maneira muito mais pessoal do que antes fazia.
Eu nunca vi a negritude como parte da comunidade LGBT, especialmente na comunidade gay, pois sempre me deparei com casais homossexuais brancos e dentro de um certo padrão social bem estabilizado.
Aos dezoito anos conheci meu primeiro e único namorado. Ele era filho de um homem negro e uma mulher branca, então sua branquitude poderia sim ser questionada, mas não a sua leitura social. Ele era branco e com o tempo eu achava que a raça não era um assunto que pesava tanto.
Pois bem, a raça começou a pesar a partir do momento em que ele me sexualizou e falava como pensava em abrir a relação. Isso sendo que ele, enquanto branco, nunca percebeu o quão difícil era pra eu visualizar uma relação aberta pelo fato de nunca ter visto o sexo como prazer. E eu percebia o quão desconfortável ele ficava com minhas questões.
Sexo, para mim, enquanto homem negro, sempre foi um instrumento de opressão por que eu nunca me senti confortável. Sempre fui descartado com facilidade e haviam pessoas que nem olhavam para o meu rosto. Se eu abrisse minha relação, sexo poderia ser para ele o que não era para mim: prazer.
Muitas vezes fiquei falando sobre minhas questões e eu ouvia “não sei o que responder”, ou quando eu tentava falar sobre minhas questões com sexo e sentir que o assunto não era agradável para ele. Não quero que ninguém tenha ciência do corpo preto, mas nunca é bom para nós, pessoas negras, sentir como se estivéssemos sozinhas, pois na realidade já estamos.
Numa relação, nós queremos nos abrir emocionalmente e sentir o conforto, sentir como se nós tivéssemos vozes. Mas eu me deparei com alguém que não queria me escutar e tinha outras atitudes racistas também.
Não quero um linchamento com ele, não o odeio, e nem quero que odeiem, mas aqui quero deixar uma reflexão muito válida para casais inter-raciais: vocês debatem ou tentam desconstruir raça dentro do relacionamento?
Porque se pessoas brancas não aceitarem a verdade do corpo negro e não terem noção das próprias atitudes, estaremos lidando com um perpetuação racial.
Depois do fim do meu namoro eu não consegui me enxergar como indivíduo ao ponto de ter me humilhado, ter voltado atrás diversas vezes e ter medo de me relacionar com outras pessoas. Nesse tempo, eu acabei sendo violentado sexualmente e assim fui tentando entender como a raça afetava minha vivência no mundo gay.
Hoje estou me libertando e me vendo como indivíduo próprio, tentando entender como instrumentos raciais são usados nas nossas inteirações socais.
Conclusão
A solidão de homens gays negros e mulheres negras está constantemente sendo abordada na cultura pop hoje em dia e existem muitos pensadores e criadores falando do assunto de uma maneira muito mais ampla.
Agora que temos o instrumento artístico ao nosso favor, podemos, e devemos, abrir nossos olhos e aprendermos mais da nossa vivência. Nunca é tarde para pessoas pretas se olharem e verem como somos bonitos. Isso pode não ser uma solução para a nossa solidão, mas é um ótimo levantamento de autoestima. Assim a gente pode encontrar amor na nossa própria comunidade.
Conteúdo adicional:
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