Crítica | “Retrato de uma Jovem em Chamas”: o amor com prazo de validade

Preciso, meticuloso e incisivo, “Retrato de uma Jovem em Chamas”, quarto longa-metragem de Cèline Sciamma na direção, mostra que às vezes algumas coisas são, sim, eternas enquanto duram.

Imagem de Retrato de uma Jovem em Chamas. Nela, vemos Héloïse, à esquerda, com roupas azuis-escuras, e Marianne, à direita, com vestes vermelhas. Ambas usam um pano na boca para se cobrirem em um dia de ventania, e estão em uma praia, ajoelhadas na areia.
Comprovando ser um filme à frente de seu tempo, Retrato de uma Jovem em Chamas já previa o uso incorreto de máscaras antes mesmo da pandemia. Fonte: Reprodução.

Ainda que não queiramos, tudo na vida tem, de uma forma ou de outra, prazo de validade: os alimentos ficam podres, os bens materiais ficam obsoletos, e as relações interpessoais, uma hora ou outra, se findam. Sejam família, amigos ou amores, uma hora as pessoas nos deixam, por motivos de força maior ou por vontade própria; e uma das maiores belezas da vida é entender que nem tudo precisa ser eterno para ser marcante.

Retrato de uma Jovem em Chamas, quarto longa-metragem da francesa Cèline Sciamma na direção, traz essa reflexão em seu cerne, ao abordar uma relação metalinguística entre artista e objeto que em muito ultrapassa as limitadas barreiras do profissionalismo pré-estabelecido e do período de uma semana no século XVIII em que o filme se passa.

No filme, acompanhamos a história de Marianne (Noémie Merlant), contratada pela Condessa (Valeria Golino) para pintar o quadro de sua filha Héloïse (Adèle Haenel), que está prometida em casamento a um nobre milanês. Outrora interna em um convento, Héloïse foi submetida a este destino após o suicídio de sua irmã mais velha.

Tão infeliz com sua sina quanto a irmã estava, Héloïse recorre a um método menos drástico: decide simplesmente que não irá posar para a pintura, que será enviada para o nobre para quem está prometida. Marianne, então, é orientada a fingir ser uma nova dama de companhia para Héloïse, a fim de pintá-la em segredo. Mas as coisas, é claro, não correm tão suavemente assim.

Imagem do filme "Retrato de uma Jovem em Chamas". Nela, vemos Héloïse e Marianne abraçadas em uma praia, em primeiro plano. Ambas estão chorando. Héloïse é loira, usa um vestido verde, e está à esquerda; enquanto Marianne, morena, segura o rosto de Héloïse com as duas mãos, e traja um vestido vermelho.
Héloïse (à esquerda) e Marianne (à direita) em seu último dia juntas. Fonte: Vanity Fair.

Tocando em temas diversos como suicídio, aborto, homossexualidade, feminismo e credibilidade artística, sem nunca deixar que estes ofusquem ou se sobreponham à narrativa principal do envolvimento de Marianne com Héloïse, a direção de Sciamma é firme em suas escolhas narrativas e estéticas, transformando este vencedor do prêmio de Melhor Roteiro e da Palma Queer do Festival de Cannes em sua possível magnum opus.

Sciamma remete aos melhores momentos de Stanley Kubrick e Ingmar Bergman em suas decisões estéticas para a condução da obra: privilegiando a iluminação natural nas tomadas externas, transforma cada frame em um quadro, belíssimo como as pinturas do século XVIII que tanto são comentadas (e pouco mostradas) na obra, evocando um quê de Barry Lyndon (1975); já nas tomadas internas, a diretora, juntamente à fotógrafa Claire Mathon, optou pelo uso de painéis refletores nas janelas, como foi feito em O Iluminado (1980).

Ao enquadrar Marianne e Héloïse, a diretora frequentemente usa primeiros planos e tomadas longas em sequência, sem cortes, apostando nas performances das atrizes mais do que naquilo que é verbalizado, colocando o espectador numa posição de observador, analista e quase voyeur, sempre nos instigando a presumir o que as protagonistas estão sentindo, e a sentirmos junto com elas. Não por acaso, muitas das suas escolhas de mise-èn-scene remetem à filmografia de Bergman; inclusive, em alguns momentos, são feitas referências diretas a obras do diretor sueco.

Imagem em preto-e-branco do filme "O Silêncio" (1963), de Ingmar Bergman. Nela, vemos as irmãs Ester e Anna. Ester está ao fundo, de frente para a câmera, enquanto Anna está em primeiro plano, de perfil.
Imagem do filme "Retrato de uma Jovem em Chamas". Nela, emula-se o enquadramento anterior, com as personagens Marianne e Héloïse. Héloïse está atrás, virada para a câmera, enquanto Marianne, que estava de perfil, vira-se para a direita, encarando o olhar de Heloíse e emulando o enquadramento de Bergman. Ambas estão em primeiríssimo plano, e é visível que estão em uma praia, adornadas pelo azul do céu e do mar.
Imagem em preto-e-branco do filme "Persona" (1966), de Ingmar Bergman. Emulando o enquadramento criado pelo mesmo diretor em "O Silêncio", aqui vemos a enfermeira Alma e sua paciente, a atriz Elisabeth Vogler, em exílio. Alma, a enfermeira, está de perfil, em primeiro plano, mais próxima da câmera; ao fundo, Elisabeth, de frente para a câmera, observa Alma atentamente. Ambas estão vestindo preto e ambas estão segurando cigarros acesos; Alma na mão esquerda, e Elisabeth, na mão direita.
De cima para baixo: O Silêncio (1963), de Bergman; Retrato de uma Jovem em Chamas (2019); e Persona (1966), também de Bergman. Fonte: Lost in Film e reprodução.

Narrativamente falando, Sciamma aposta em uma história de amor que não é alheia às problemáticas do período histórico em que Retrato de uma Jovem em Chamas se passa, mas que não se deixa ser engolida pelos possíveis anseios que um romance entre duas mulheres no século XVIII poderia suscitar.

Ainda que recebamos breves vislumbres sobre a forma como o casal de protagonistas lida com suas sexualidades (Héloïse era interna de um convento e comenta que “esse estilo de vida tem lá suas vantagens”; Marianne diz que não pretende se casar com um homem e que já passou por um aborto), as possíveis repreensões da sociedade pouco fazem diferença: ali, naquele casarão em uma ilha na região da Bretanha, tudo o que importa é o que Marianne e Héloïse farão com o pouco tempo que lhes foi dado.

No breve período que têm juntas, Marianne e Héloïse assumem, involuntariamente, os papéis de Orfeu e Eurídice em sua tragédia grega: Orfeu é um músico muito talentoso, que encanta a todos com sua música; e Eurídice é o amor de sua vida. Pouco antes de se casarem, contudo, Eurídice é picada por uma cobra e morre.

Revoltado com o destino de sua amada, Orfeu vai até o Tártaro e pede a Hades e Perséfone que libertem Eurídice e, encantados com a habilidade musical de Orfeu, assim o fazem, com uma única condição: que Orfeu suba até o mundo dos vivos sem olhar para trás. Desconfiado da veracidade da palavra de Hades, Orfeu se vira quando está quase chegando e, assim, vê sua amada sendo puxada de volta para o Tártaro – Hades falava a verdade, e ele descumpriu o combinado.

Esta tragédia é discutida ostensivamente em uma cena do filme, em que Héloïse lê parte da tragédia para Marianne e Sophie (Luàna Bajrami) e, enquanto Sophie argumenta que Orfeu foi simplesmente burro ao virar para trás; Marianne diz que talvez tenha sido uma decisão deliberada, escolhendo a memória da amada, idealizada e intocável, em vez da presença real dela; e Héloïse arremata com a especulação de que talvez a escolha tenha sido da própria Eurídice: “talvez ela tenha dito ‘olhe para trás'”. Não por acaso, é com um “olhe para trás” que Héloïse se despede de sua amada, seu Orfeu, sua Marianne, na última vez em que se veem pessoalmente.

Marianne, vestida como Orfeu, na frente de sua própria pintura. Fonte: tumblr ladyonfire28

Marianne, consumida pelo fogo do amor que viveu, deixa com que a jovem em chamas permeie sua vida e sua obra ao retratá-la em pinturas, seja de forma direta – com o quadro que dá nome ao filme e aparece logo na primeira cena – , seja de forma indireta – com o quadro em que retrata a queda de Eurídice e que ela expôs no Louvre sob o nome de seu pai. Na cena do Louvre, o “primeiro final” do filme, Marianne está vestida com as mesmas cores que o Orfeu que retratou, enquanto Eurídice foi pintada com vestimentas brancas iguais às de Héloïse na última vez em que estiveram juntas.

Nesta cena, Marianne encontra, também exposto no Louvre, um retrato de Héloïse com sua filha, em que ela posa com um livro entreaberto na página 28: um claro recado para o seu amor perdido, que traçou um autorretrato na página 28 de um livro, a fim de que Héloïse pudesse carregar consigo uma imagem dela, para que suas feições não lhe escapassem jamais à memória.

Com este momento, e com o final definitivo, em que Marianne vê, de longe, Héloïse assistindo uma ópera (que, em uma das primeiras conversas entre as duas, a jovem havia dito que nunca presenciou), ao som da mesma peça de Vivaldi que havia tocado para ela despretensiosamente no cravo; e decide não fazer nada, apenas observá-la como um dia observou atenta e furtivamente para pintá-la em segredo, entrando em concordância com sua teoria sobre Orfeu (de que teria preferido a memória de sua amada à realidade); Retrato de uma Jovem em Chamas termina de forma assertiva, reiterando que nem tudo precisa ser eterno para ser marcante.

A fatídica página 28. Fonte: Neon

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Confira o trailer de Retrato de uma Jovem em Chamas:

Se interessou pelo filme? Ele está disponível no Telecine Play, e em mídia física pela Versátil Filmes em parceria com a Supo Mungam Films.

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Gabriela Spinola
Gabriela Spinola

Tradutora, mineira, e eternamente emo.

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Dalila

Grande crítica eu mesma não tinha notado a similaridade estabelecida entre a mitologia grega e o próprio enredo da história do filme, e mesmo sendo muito fã não teria notado tanto pormenores similares entre a filmografia de Bergman

Luiz Felipe Spinola Silva

nunca tinha ouvido falar sobre, vou assistir!

Ana Paula Alves

Eu estava em dúvida se assistia esse filme ou não, mas sua crítica me convenceu. Já coloquei ele na listinha dos próximos a assistir ? Muito boa ??

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