Resenha | Eu que nunca conheci os homens – um relato de solidão e esperança

Solidão e esperança, à primeira vista, parecem palavras controversas de se usar em uma mesma frase. É como se para ter esperança fosse necessário apoio, amigos, família, amizade, alguém em quem confiar. Enquanto a solidão é um abismo, sem nada, nem ninguém… confiar em quê? No entanto, ao ler a distopiaEu que nunca conheci os homens‘, da escritora belga Jacqueline Harpman, foram essas as palavras que ficaram na minha cabeça.

Quando se trata de histórias distópicas, com realidades devastadas e corrompidas onde tudo parece fugir do poder humano, pouco importa a combinação semântica, mas como aquilo refletirá quando interpretado para nossa realidade. Em Eu que nunca conheci os homens, Jacqueline Harpman brinca com muitos elementos que parecem antagônicos e impossíveis juntos para contar a história de 39 mulheres e uma menina.

Capa do livro Eu que nunca conheci os homens - Otageek

O livro é narrado em primeira pessoa por uma menina, a mais nova dentre as 39 mulheres que vivem enjauladas em um sótão vigiado a todo momento por guardas. A narradora, protagonista do livro, não tem nome. Entre as outras mulheres que convivem na jaula, ela é chamada apenas de “Pequena“. Nenhuma das mulheres sabe como ou por que estão ali e também não fazem ideia de em qual cidade, estado, país ou planeta estão.

Conhecer essa história a partir do ponto de vista da garota, a mais nova entre as mulheres, é o que torna a experiência de leitura desse livro tão única e especial.

Pequena: a garota sem nome e sem memórias

A garota que nos conta a história cresceu entre as mulheres e, desde muito nova, sua vida se resume à jaula e à convivência com as mesmas mulheres. Ela não tem memórias da vida anterior a isso e desconhece a maioria das coisas comuns da vida “normal” sobre as quais as mulheres tanto conversam entre si: amor, homens, banheira, toalha… não significam nada para ela.

Enquanto todas as outras mulheres constantemente rememoram esse passado tão cheio de vida, ela é apenas uma ouvinte vazia dessas conversas, pois nada daquilo parece se encaixar em sua realidade. Sua infância é feita de ouvir essas conversas e tentar construir em sua mente algo que se encaixe na imagem dessas coisas, sentimentos e ações.

Conforme cresce, a menina passa a entender como seu mundo é limitado, como sua vida é diferente e como faz falta as experiências que ela nunca teve. Nesses momentos, a garota se questiona muito sobre sua própria humanidade e o significado da sua vida. É desse modo que Jacqueline Harpman nos leva a pensar junto com sua personagem: o que nos faz mais ou menos humanos? O que define nossa humanidade?

Ilustração Eu que nunca conheci os homens - Otageek

Estudiosos como Hannah Arendt, Maurice Halbwachs e Pierre Nora se debruçam em estudos sobre a importância da memória coletiva e da vida social para nossa formação e desenvolvimento, algo que se constitui como uma condição para a humanidade. Mas se tudo isso é tirado de nós, o que sobra? A personagem de Eu que nunca conheci os homens vive, durante o seu relato, atormentada por essas questões.

A história é, então, uma jornada de esperança dessas mulheres de retomar ao que um dia suas vidas significaram. Já para Pequena, a esperança é conseguir viver essas experiências. No entanto, muitas vezes, exaustas de acreditarem por tanto tempo em vão, as mulheres vivem anestesiadas. É a garota que constantemente carrega sozinha o peso da esperança, que é alimentada da possibilidade de realmente viver em um mundo onde sua existência faz sentido.

É interessante perceber, também, como a escrita da autora faz jus à sua personagem. Como a menina que narra a história tem uma visão limitada de mundo, a história é direta e a escrita é objetiva. No entanto, ela não deixa de ser brutal e avassaladora em muitos momentos, principalmente quando a personagem reflete sobre a vida ou a situação em que se encontra.

Distopia a um passo da vida real

Jacqueline Harpman é uma belga de origem judaica que, além de escritora, foi também psicanalista. Durante a juventude, a autora viu de perto a invasão e violência nazista no próprio país, de onde foi obrigada, junto com a sua família, a fugir para Casablanca até o final da guerra.

Refletindo sobre esse momento da vida de Harpman e o próprio contexto histórico do nazismo, é possível traçar alguns paralelos entre a história e a realidade e perceber que, muitas vezes, a ficção, por mais surreal que possa parecer, está mais próxima do que imaginamos.

Jacqueline Harpman autora de Eu que nunca conheci os homens - Otageek
Jacqueline Harpman, autora de Eu que nunca conheci os homens.

O fato de acompanharmos mulheres que foram afastadas de suas realidades e presas, sendo usadas como algum tipo de experimento, relembra os campos de concentração do nazismo, por exemplo. Além disso, durante o período de guerra, muitas crianças cresceram isoladas e abandonadas, vivendo muito daquilo que a protagonista de Eu que nunca conheci os homens viveu: foram deixadas à própria sorte, sem saber quem são ou como seguir em frente.

Trazendo a discussão para o presente, também é possível pensar em como, a cada dia que passa, história e memória são assuntos cada vez menos discutidos e valorizados. Um exemplo é a não obrigatoriedade de disciplinas como História, Geografia e Sociologia na grade escolar presente na proposta do Novo Ensino Médio. Isso reflete no apagamento e esquecimento de memórias fundamentais para a nossa formação enquanto ser social.

Assim, a autora nos faz pensar no passado como um exemplo concreto e as possíveis influências disso no presente e no futuro, trazendo seus personagens e problemáticas para discussões além da ficção.

Leia também:

E se você gostou do nosso conteúdo, apoie-nos através das nossas redes sociais e acompanhe nosso podcast

Facebook RSS Youtube Spotify Twitch


Receba conteúdos exclusivos!

Garantimos que você não irá receber spam!

Compartilhe essa matéria!
Daniela Palmeira
Daniela Palmeira

Olá pessoal! Sou estudante de jornalismo, apaixonada por literatura e cinema! Estou por aí sempre escrevendo e conversando sobre livros, filmes e séries.

Artigos: 192
Se inscrever
Notificar de
guest
1 Comentário
Mais velho
Mais novo Mais votado
Feedbacks em linha
Ver todos os comentários

[…] Resenha | Eu que nunca conheci os homens – um relato de solidão e esperança […]