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Crítica | Bob Dylan é figura inalcançável movida pela música em ‘Um Completo Desconhecido’
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Não importa o quão clichês, formulaicas ou até mesmo medíocres possam ser, eu nunca resisto a uma cinebiografia. Há algo na curiosidade – e talvez até no puro fascínio – de ver como diferentes diretores reinterpretam figuras icônicas que sempre me puxa para esse gênero.
Contudo, se aventurar nesse tipo de filme não é uma tarefa fácil, por distintas razões. Adaptar a vida de uma personalidade, colocá-la em tela e definir o recorte de uma história inteira pode resultar em tentativas fracassadas, como ‘Jackie’ (2016), que acompanha Jackie Kennedy nos eventos que sucederam à morte de seu marido, o presidente John F. Kennedy. Ou, ainda, pode seguir uma abordagem que estabelece uma fórmula posteriormente explorada à exaustão, como ‘Johnny & June’ (2005), que retrata a vida de Johnny Cash e sua esposa, June Carter – filme que, por acaso, foi concebido pela mesma mente artística por trás de ‘Um Completo Desconhecido’: o diretor James Mangold.
Desta vez, o desafio de Mangold é retratar na tela a figura mitológica de Bob Dylan, um artista frequentemente explorado nesse gênero cinematográfico. Martin Scorsese fez isso no documentário ‘No Direction Home’ (2005), enquanto Todd Haynes adotou uma abordagem mais ousada ao apresentar múltiplas interpretações de Dylan no intrigante ‘I’m Not There’ (2007).
Não à toa, Mangold passou cinco anos ao lado de Timothée Chalamet, ator que dá vida a Bob Dylan em ‘Um Completo Desconhecido’, trabalhando no projeto que hoje vemos na tela. Durante esse tempo, Chalamet incorporou Dylan por completo, adotando seus maneirismos, seu timbre vocal e sua habilidade com os instrumentos – um esforço recompensado brilhantemente em sua interpretação, que, sem sombra de dúvidas, é a alma do filme de Mangold.
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‘Um Completo Desconhecido’ opta por explorar os eventos entre 1961 e 1965, período em que o jovem Dylan viaja para Nova York em busca de seu ídolo, Woody Guthrie (Scoot McNairy), uma figura central da música folk na época. Além de Woody, Dylan também conhece Pete Seeger (Edward Norton), outro grande nome do gênero. Ambos se tornam uma espécie de mentores para o jovem Bob no início de sua carreira. Norton brilha nas cenas ambientadas em 1961, mas perde força na segunda metade do filme, quando fica claro que é Dylan quem guia seu próprio caminho na música.
É na Nova York dos anos 60 que Mangold se apoia. As ruas da cidade ganham vida com uma fotografia desbotada, os bares fervilham, e o cenário musical passa por uma transformação, inicialmente resistente ao folk. Cabelos, maquiagens e roupas são trabalhados meticulosamente para que a ambientação da época seja reconhecível de imediato. Nesse contexto, o momento histórico ganha força, com a sombra dramática do comunismo em plena Guerra Fria, o mandato de Kennedy e seu posterior assassinato e, principalmente, a luta pelos direitos civis. Contudo, os movimentos civis, que tiveram grande importância nas composições de Dylan, são postos como plano de fundo, sem que o filme dê a devida importância a esse aspecto da música do cantor, um artista que se engajou fortemente com a época.
A essa altura, fica claro que, na versão de Mangold, Dylan é uma figura motivada pela música, enquanto suas relações, tampouco, importam. A mitologia em torno do artista é mantida, perpetuando a inviável tarefa de alcançá-lo. É através dos óculos escuros, que escondem aquilo que jamais iremos saber, que Dylan veste uma armadura. Chalamet, como um dos grandes artistas de sua geração, adota sua voz fanha, os gestos com o cigarro e as relações amorosas conturbadas que dificilmente o atingem, afinal, sua motivação é a música. É nessa perspectiva que Dylan só se torna realmente interessante quando olhamos para a lenda mundialmente conhecida nos parágrafos da história.
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Fica a cargo de Elle Fanning interpretar Sylvie Russo, um nome fictício para uma figura que teve um relacionamento amoroso com Dylan, e de Monica Barbaro a tarefa de interpretar a cantora Joan Baez, uma artista de sucesso na música folk da época, que também se relacionou com Dylan. Nesse triângulo, ambas as mulheres se deparam com barreiras entre elas e Dylan. Sylvie é quem percebe que nada fica entre Dylan e sua música. É ela que também questiona todo o mistério em torno do passado do namorado, em um momento em que a direção aparenta que irá nos revelar algo a mais, mas opta por permanecer no caminho do mistério, do mediano, uma característica que jamais definiu a excepcionalidade das composições de Dylan.
Mangold, assim como fez em ‘Johnny & June’ (2005), coloca seus atores para cantar e tocar com suas próprias vozes e mãos, sem modificações de estúdio. Essa escolha excepcional traz força para seu filme, rejeita o superficial e abraça o talento dos artistas que escolheu a dedo para integrar seu elenco. É nessa multiplicidade de vozes que Dylan, a essa altura, longe de ser um completo desconhecido, provoca mudanças no folk com a inserção de sua guitarra, uma iniciativa rejeitada inicialmente pelo público e pelos próprios figurões desse gênero musical.
Embora ‘Um Completo Desconhecido’ seja brilhantemente estrelado por Chalamet, um ator versátil que captura com perfeição a essência de Dylan, o filme acaba optando por uma abordagem segura, oferecendo uma narrativa razoável sobre o artista. Contudo, como já mencionado, Chalamet se destaca ao entregar performances inesquecíveis das icônicas composições de Dylan. O filme tenta retratar um dos maiores mitos da história da música, apresentando Dylan como uma figura inatingível, movida apenas pela música – e, talvez, seja essa sua verdadeira essência: um ícone eterno, condenado a permanecer inalcançável para sempre.
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