Entrevista | Oghan N’thanda – autor do primeiro romance Steampunk brasileiro

Conversamos com o Oghan N'thanda, autor do primeiro romance Steampunk brasileiro. O nosso afrofuturismo já tem o seu Oghan.

Dia 3 de julho é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, criado em decorrência da sanção da lei Afonso Arinos (nº 1390/1951). Com o advento do filme Pantera Negra (2018), houve uma verdadeira eclosão e profusão não só de super-heróis negros, como de interesse pelos mesmos.

Oghan N'thanda, com a mão no queixo, sentado à mesa com uma tapeçaria exibindo os signos do zodíaco.

Otageek conversou com José Roberto Vieira, o Zeroberto, ou Zero, ou Oghan N’thanda, autor do primeiro romance steampuk brasileiro, O Baronato de Shoah (que se baseia na história do povo conhecido como Beta Israel, os judeus etíopes severamente perseguidos por seu governo na década de 1990) e do romance Os Oradores dos Sonhos, publicado pelo Grupo Editorial Quimera, liderado por uma das poucas editoras-chefe negras do Brasil, Mariana Roman. O livro está entre os mais vendidos da lista do grupo e está disponível na loja da editora e livrarias do país.

Capa do livro O Baronato de Shoah

Negro e da Zona Oeste de São Paulo, filho de um contador e de uma costureira, Zé Roberto trabalhava como operador de caixa e, durante as longas viagens de ônibus e os intervalos para almoço, aproveitava para ler. Zé Roberto ingressou na Faculdade de Letras, tendo aulas com Marisa Lajolo e Sérgio Rizzo.

Capa do livro Os oradores dos Sonhos

Em 2009, publicou na coletânea Anno Domini – Manuscritos Medievais, da Editora Andross, junto com grandes nomes como Raphael Draccon, Leandro Reis e Ana Cristina Rodrigues. Mais tarde, publicou nas editoras Draco, Jambô, Empíreo e Multifoco. Em 2018 venceu o Prêmio Internacional Wattys, promovido pela plataforma canadense Wattpad. Oghan foi considerado um dos melhores criadores de mundo, naquele ano.

Para quem não conhece o steampunk (ou ficção a vapor, numa tradução livre) é o estilo presente em obras como a HQ e filme A Liga Extraordinária (escrita por Alan Moore, que dispensa maiores apresentações e desenhada por Kevin O’Neill, da antiga 2000 A.D., Marshall Law e A Era Metalzoica), a série Sombra e Ossos e As Loucas Aventuras de James West (Wild Wild West), estrelado por Will Smith. Da mesma forma como o ator, o autor que aqui entrevistamos deu um tapa na cara do preconceito.

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Otageek- Você é o autor do primeiro romance steampunk brasileiro, O Baronato de Shoah, lançado em 2011. Poderia falar um pouco sobre o enredo?

Oghan N’thanda- Desde o começo de sua concepção, O Baronato de Shoah sempre foi pensado como uma saga que apresentaria o mundo de Nordara. Esse mundo teria uma tecnologia a vapor, mas com vários elementos da nossa época e até mesmo futuristas.
O Baronato de Shoah é uma saga que conta a história da Canção do Silêncio, um esquadrão de elite envolvido em um escândalo imperial que coloca a própria existência das pessoas em risco. Dentro dessa disputa política, os membros da Canção do Silêncio descobrem que o seu mundo está acabando e que um de seus recrutas é um traidor responsável pelo fim do mundo.

Otageek- Sua primeira publicação foi na coletânea Anno Domini – Manuscritos Medievais, e pela Editora Andross, junto com Raphael Draccon, Leandro Reis, Ana Cristina Rodrigues, entre outros. Você também publicou pelas editoras Draco, Jambô, Empíreo e Multifoco. Qual foi o conto na Anno Dimini? Fale um pouco de seus outros contos nas outras editoras.

Oghan N’thanda- Na Anoo Domini eu publiquei um dos meus primeiros contos de forma profissional, ele se chamava “Vendetta” e era uma história de vingança: nele um cavaleiro perseguia uma entidade mágica chamada “Tempestade Vermelha”, que havia destruído a sua família. No caminho dessa vingança o cavaleiro acabava matando vários inocentes, corrompendo a si mesmo e reiniciando o processo de vendetta (vingança) ao se tornar o vilão da história de outra pessoa.

Otageek- Você ingressou no mundo da literatura através dos videogames. Desde o advento dos adventures e, cada vez mais, os jogos de videogame têm histórias intrincadas, elaboradas e até dramáticas como The Last Of Us, Life is Strange e Tell me Why e filmes que vêm de games desde Super Mario Bros até Prince of Persia e Sonic e os videogames são chamados a 11ª Arte. Você considera os videogames (e seus enredos) como literatura fantástica?

Oghan N’thanda- Essa questão é sempre polêmica, eu cresci ouvindo que quadrinhos não eram literatura e bati muito nessa tecla durante um bom tempo. Agora, os videogames entraram nessa onda e as pessoas voltaram a discutir se eles são literatura.

Eu cresci ouvindo que quadrinhos não eram literatura e agora os videogames entraram nessa onda. Games são arte!”

Para mim os videogames não são literatura fantástica, eles são videogames. São uma arte suficiente por si mesma com grandes nomes de destaque ao longo de sua história, como Yoshitaka Amano, Hideo Kojima, Ammy Hanning ou Rihana Pratchett.

Precisamos aproveitar que o mercado está aquecido e, principalmente, esse reconhecimento de que games são a 11ª arte! Ora, se temos esse título com a gente, para que precisamos encaixar os games na literatura ou nos quadrinhos? Games são arte!

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Otageek- Uma vez me disseram que os enredos dos games só poderiam ser considerados dramaturgia quando fizessem a plateia chorar. Isso já acontece, vide Gris e outros. Você ingressou no universo da literatura fantástica através de uma fita (que era como chamávamos comumente os cartuchos) de videogame de RPG. Que jogo foi esse?

Oghan N’thanda- Foi o que eu comentei ali em cima: os games são arte por si mesmos, eles não precisam de comparativos com outras formas de arte porque a interação deles com seu público é algo completamente diferente do que vemos na pintura, no teatro ou na música: além disso, os games contém elementos das outras artes em si.

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Um jogo que comprova o que estou falando é a saga Final Fantasy, uma das minhas principais referências como artista: o jogo que mais me influenciou nessa saga foi Final Fantasy 3, que possui trilhas de ópera e cenários pintados à mão! O jogo foi um espetáculo na época, tendo, inclusive, discutindo temas muito importantes, como ditadura militar, aborto e abusos psicológicos.

Otageek- Ser nerd, intelectual, geek não é uma tarefa fácil, né? Na periferia, menos ainda. Você chegou a ser hostilizado por seus gostos e preferências? Tem algum episódio engraçado (ou trágico/violento) pelo qual você passou por curtir Fantasia Medieval, steampunk e afins?

Oghan N’thanda- Na periferia as coisas acontecem de maneira rápida e intensa, as mudanças estão sempre ali e, dependendo do lugar, a passagem de poder entre facções era algo cotidiano quando eu era garoto.

Eu sofri muito por ser nerd quando adolescente. Era sempre isolado, as pessoas riam de mim e me agrediam. Mas eu tive ótimos amigos para aguentar essa fase, principalmente me desenvolvendo como escritor de fantasia.

“Eu sofri muito por ser nerd quando adolescente. As pessoas riam de mim e me agrediam. Vivíamos pela rua cheio de mochilas e pastas. Desconfiavam daquele monte de gente vestida de preto e com mochilas nas costas. Acreditavam que a gente trabalhava para as facções ou para a polícia.”

Como nós jogávamos muito RPG uns nas casas dos outros, vivíamos pela rua cheio de mochilas e pastas. Só que, como as facções criminosas do meu bairro viviam em guerra, toda hora éramos parados pelos “donos” do bairro e pela polícia, porque eles desconfiavam daquele monte de gente vestida de preto e com mochilas nas costas. Eles sempre acreditavam que a gente trabalhava para as facções ou para a polícia, sei lá o porquê.

Depois de muitas abordagens, algumas nem um pouco educadas, eles começaram a nos reconhecer como “os roqueiros” e a nos cumprimentar. Um fato interessante sobre isso é que o filho de um traficante e o filho de um policial começaram a andar com a gente por um tempo; infelizmente o filho do traficante acabou morrendo, confundido com um bando do bairro; o filho do policial hoje é fotógrafo.

Otageek- Você como escritor negro e de periferia teve um trabalho árduo para se consolidar como escritor, principalmente de ficção científica e de steampunk, um gênero pouco conhecido. É um preconceito duplo, não? O fato de escrever literatura geek e o fato de o fazê-lo sendo negro e de periferia, não só pelo preconceito incutido no fato de ser negro e de periferia, mas da própria periferia em relação a estes temas.

Oghan N’thanda- A gente acaba se acostumando com esses desafios, mas é importante focar no que você deseja para a sua vida. Eu sempre lutei muito para ter meus livros publicados no Brasil e, recentemente, passei por uma situação muito curiosa: tive um conto rejeitado em uma coletânea em uma editora brasileira, mas esse conto foi aceito em uma coletânea internacional. Estou só esperando a editora começar a divulgar para eu também avisar as pessoas aqui.

“Tive um conto rejeitado por uma editora brasileira, mas aceito por uma coletânea internacional. Nosso mercado é incompreensível para quem é de fora. Estamos entre o 7º e 8º maior do mundo, mas temos um número ínfimo de leitores”

O processo editorial no Brasil ainda é muito carente, nós enfrentamos diversos problemas sociais e culturais que criaram um mercado editorial incompreensível para quem é de fora: somos um dos maiores mercados editoriais do mundo, entre a sétima e oitava posição, em vendas de livros, mas ao mesmo tempo somos um mercado com um número muito pequeno de leitores. Como isso é possível?

“Já ouvi de editores que eu não deveria colocar fotos minhas nas contracapas de livros pois o público é refratário a autores negros.”

No meu caso eu entendo, por ser negro, periférico, escrever gêneros pouco conhecidos e não ter o apoio de uma grande editora. Eu já ouvi, inclusive, de editores, que eu não devia colocar fotos minhas nas contracapas dos livros, pois as pessoas resistiam à livros de autores negros. Em outra situação, me falaram que a minha primeira publicação era um “golpe de sorte”, e que eu não tinha talento algum.

Otageek- Como está a cena steampunk/afrofuturista brasileira? Temos autores como você e Ale Santos.

Oghan N’thanda- A cena steampunk está ótima, com eventos muito representativos como a Steampunk Santos. Claro, ainda sentimos falta da Steamcon em Paranapiacaba, mas tenho certeza que ela vai voltar.

O steampunk cresceu muito no Brasil e dá sinais no exterior de que vai voltar à moda. Diferente da fantasia e da ficção científica, o steampunk vem em ondas fortes, que depois desaparecem do mercado. A nova onda do steampunk está aí, invadindo as praias e os imaginários, para marcar presença de novo.

O afrofuturismo ganhou muita repercussão depois do sucesso de Pantera Negra. Além do Ale Santos e de mim, nós temos a Sandra Menezes e a Lu Ain-Zaila produzindo ótimo conteúdo afrofuturista na literatura. Além do incrível trabalho do psicólogo Tiago Cabral com grupos minoritários em seu canal do YouTube e suas ficções urbanas ou do poeta Mano Rogério, no seu canal do Instagram.

Mas, não é só isso: No Martins faz pinturas, instalações e performances afrofuturistas; Ellen Oléria representa muito bem na música e até a Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, o maior evento de afro empreendedorismo na América Latina.

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Otageek- Muita gente critica o afrofuturismo e não compreende que o estilo, assim como qualquer estilo de ficção e literatura fantástica, lança mão de metáforas para tratar das mazelas do cotidiano e essa é a sua busca com a sua literatura steampunk, não?

Oghan N’thanda- Exatamente. A minha maior crítica ao steampunk é o fato de que as pessoas focam muito no steam (vapor) e esquecem do punk: falta atitude, rebeldia, dar voz aos abandonados, aos excluídos e às pessoas que não estão de acordo com o padrão social.

A minha maior crítica ao steampunk é o fato de que as pessoas focam muito no steam (vapor) e esquecem do punk . Máquinas não são melhores que pessoas.

Steampunk precisa ser punk. Precisa lembrar que sua origem é o cyberpunk, que é melancólico, triste, desesperançoso. A gente pode colorir, claro, o steampunk de várias formas, mas também temos de lembrar de criar metáforas que alertem o mundo: máquinas não são melhores que pessoas.

Otageek- Os Oradores dos Sonhos, título do seu livro, é também o nome de uma das tradições do RPG Mago: A Ascensão. A tradição serviu de inspiração para o título e o tema ou ambos beberam da mesma fonte?

Oghan N’thanda- Nunca me fizeram essa pergunta… Mas eu acabei de descobrir isso!
Quero dizer, quando eu escrevi Os Oradores dos Sonhos eu não sabia (ou não lembrava) dessa tradição de Mago: A Ascensão.

Esse título foi escolhido porque o livro que deu a ideia para os oradores se chamava “O Apanhador de Sonhos” e foi um projeto meu de 2008 que não vingou. Pelo que eu sei “Os Oradores dos Sonhos” também é o título de um suplemento de Dungeons & Dragons, mas tudo isso, repito, descobri depois.

Além da influência do Apanhador de Sonhos eu queria um livro que falasse da oralidade, de contar histórias ou mudar o mundo através da palavra. Eu sempre gostei do termo “Oradores”, para ser honesto.

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Claudio Siqueira
Claudio Siqueira

Escritor, poeta, Bacharel em Jornalismo e habitante da Zona Quase-Sul. Escreve ao som de bits e póings, drinkando e smokando entre os parágrafos. Pesquisador de etimologia e religião comparada, se alfabetizou com HQs. Considera os personagens de quadrinhos, games e animações como os panteões atuais; ou ao menos, arquétipos repaginados.

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