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Crítica | “Megalópolis” é delírio utópico imperfeito de Coppola
Em uma era em que o cinema se molda a visões excessivamente explicadas e rigidamente engessadas, inserido em uma indústria que privilegia a arte como produto, onde o retorno financeiro sobrepõe a autenticidade criativa, encontrar uma obra que rompe com essas convenções é um verdadeiro ato de coragem. É nesse espaço de transgressão que o cinema volta a ser fascinante, resgatando a essência da Sétima Arte: uma janela para enxergar o mundo de maneira mais profunda e, através dela, entender a própria posição em que vivemos.
Refiro-me ao projeto mais audacioso e de longa gestação na carreira do célebre Francis Ford Coppola, o visionário diretor que nos presenteou com obras que marcaram para sempre a história do cinema, como “O Poderoso Chefão” (1972) e o icônico “Apocalypse Now” (1979). Agora, após mais de 40 anos de produção, “Megalópolis” finalmente chega aos olhares do público. Este não é apenas mais um filme; é um projeto pessoal que Coppola teve de financiar com seus próprios recursos, diante do desinteresse dos grandes estúdios em bancar sua visão. Curiosamente, a mesma indústria que um dia se curvou diante de sua genialidade agora se mostra indiferente à sua arte. “Megalópolis”, portanto, emerge não só como uma obra cinematográfica, mas também como um manifesto silencioso contra a Hollywood atual, um símbolo de resistência criativa em um cenário onde o comercial muitas vezes eclipsa o artístico.
Concisamente, a obra é uma releitura de uma vasta coletânea de eventos históricos, inspirados pela ambição e grandiosidade da Roma Antiga, agora refletida na própria Nova York, tudo imerso em uma estética profundamente shakespeariana. Através desses elementos, Coppola constrói uma narrativa delirante, radical e profundamente autoral, oferecendo-nos um cinema maneirista, onde o tom descontrolado é proposital, desafiando convenções e intensificando a experiência estética.
Cesar Catilina é uma espécie de visionário progressista, movido pela ambição de transformar o mundo por meio de sua arte; um protagonista controverso capaz de controlar o tempo, disposto a oferecer a uma Nova York decadente – imersa nos submundos do poder e no domínio desses sobre os afortunados – uma “Megalópolis”: uma cidade futurística inspirada em uma utopia urbana defendida por Catilina, mas longe de ser aceita por aqueles que detêm o poder. Um personagem inspirado por diversas figuras históricas, como o próprio Lúcio Sérgio Catilina, um militar e senador da Roma Antiga, e pelo ex-governador do Paraná, Jaime Lerner.
Por essa via, “Megalópolis” se apresenta por meio de uma narrativa ciente de seu descontrole de tom, marcada por atuações caricatas, teatrais e, fundamentalmente, melodramáticas. Trata-se de um projeto pessoal e ambicioso de um artista que, aos 85 anos, se dispõe a arriscar e explorar caminhos desconhecidos em comparação com seus projetos anteriores, mesmo que esses ainda sirvam de inspiração, em certos aspectos, para a fábula utópica e controversa de “Megalópolis”. Um homem que está disposto a romper com seus próprios paradigmas, movido pela paixão sem precedentes por seu ofício.
Distante dos ideais de um “cinema fast-food”, um termo cunhado pelo próprio Coppola ao descrever e criticar os modos e as formas da produção cinematográfica contemporânea, “Megalópolis” é confeccionado de forma complexa e multifacetada, rico em dilemas morais e políticos, percorrendo questões profundas ocasionadas ao inevitável desfecho da vida humana. De certa forma, nos lembra que todos os impérios caem, e a sociedade decadente retratada por Coppola não é uma exceção.
Portanto, “Megalópolis” não é movida pela busca da perfeição, e a obra em si não deve ser vista como sinônimo desse conceito; afinal, assim como na vida humana, no cinema, o conceito de perfeição é inaplicável. É compreensível que, após mais de 40 anos em produção, a narrativa reúna diferentes acontecimentos políticos e econômicos da história norte-americana, resultando em uma sobrecarga de visões de Coppola, acumuladas ao longo do tempo. Em suma, sua abordagem parece ser mais interessante do que o próprio roteiro, que raramente desenvolve todos os temas que propõe. Da mesma forma, seu descontrole de tom, embora rico em conteúdo, não atinge suas intenções de maneira eficaz, por mais notáveis que sejam. Para o bem e para o mal, “Megalópolis” é uma obra repleta de ideais, que tem muito a dizer ao espectador e aguardou mais de 40 anos para se concretizar.
Contudo, a cada minuto que se passou desde que os créditos finais subiram na grande telona, não deixei de refletir sobre o apresentado, mais pelo que representa do que pela obra em si. O cinema, afinal, não se trata de fornecer respostas, mas sim de fazer as perguntas corretas. “Megalópolis” é, portanto, um risco que se distancia da narrativa hollywoodiana clássica, vindo de um artista que, assim como seu protagonista, nos convida a sonhar por meio de uma síntese do mundo humano.
São muitas as emoções e sensações refletidas pelo maneirismo de Coppola; discussões acerca do tempo, e como o perdemos com situações que raramente se valem; discussões políticas dos impérios antigos e contemporâneos; morte e vida; e, principalmente, o entusiasmo de um mundo contemporâneo por vender ideias felizes e, assim, estimular o consumismo de seres essencialmente infelizes.
Em meio a tantas visões futurísticas, a “Megalópolis” de Coppola, apesar de suas falhas, é uma das razões que me fazem amar o cinema – uma arte que provoca discordâncias, elucida a vida contemporânea e influencia a criação de diferentes artistas. Ainda que não se trate de uma “grande obra”, por representar uma arte que desafia as regras convencionais e frequentemente resiste ao passar do tempo, sendo mais imperfeita do que perfeita, é um dos filmes que permanecerá eternamente marcado na minha jornada cinematográfica. Se todo homem possui um Império Romano, o de Coppola é o próprio Império; certamente, “Megalópolis” se tornou um dos meus.
Confira o trailer de “Megalópolis”:
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