Crítica | Entrelaçando identidade e nostalgia em uma jornada alucinante e colorida, “I Saw the TV Glow” medita sobre o peso da vida

Jane Schoenbrun faz de “The Pink Opaque” uma fantasia viva que habita dentro de cada um de nós
Até que ponto um programa de TV pode influenciar e moldar a identidade de uma pessoa?
Foto: Divulgação/A24

Jane Schoenbrun já havia atraído minha atenção quando dirigiu seu segundo longa-metragem, “We’re All Going to the Word’s Fair” (2021), uma narrativa sobre a Gen Z e os perigos da internet para os jovens, em uma espécie de jogo similar ao da Baleia Azul. Igualmente macabro quanto, seu primeiro longa, “A Self-Induced Hallucination” (2018), explorava uma figura mítica originada nos confins dos fóruns de discussão da internet que amedrontou uma gama de cibernautas: o “Slenderman”. A Internet e suas repercussões em uma nova geração de internautas parecem ser temas inerentes no cinema de Schoenbrun, que não hesita em criar obras inspiradas na direção de David Lynch. Continuando a explorar produtos culturais e digitais que penetram na mente humana, Schoenbrun apresenta seu terceiro longa-metragem, “I Saw the TV Glow” (2024) que desta vez atravessa o túnel do tempo, incorporando elementos e discussões presentes em seus trabalhos anteriores, mas, lamentavelmente, ainda não chamou a atenção das distribuidoras brasileiras, assim como seu antecessor. 

“I Saw the TV Glow” acompanha a história de dois jovens nos anos 90, Owen (Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Paine), que se unem através de um programa de TV popular da época, o “The Pink Opaque”. O show narra a história de Tara e Isabel, duas jovens que desenvolvem uma conexão psíquica, permitindo que se comuniquem através de um plano espiritual. Na trama, as garotas enfrentam o Mr. Melancholy, que tenta aprisioná-las em um submundo chamado Reino da Meia-Noite, uma narrativa que se assemelha muito bem à apresentada em “Buffy: A Caça Vampiros” (1997-2003). 

Por essa via, Schoenbrun recria os anos 90 através do sentimento de pertencer àquela geração, seja assistindo a programas de TV que remetem à época ou aos hábitos de uma infância marcada por padrões rígidos de comportamento. Enquanto “We’re All Going to the Word’s Fair” transformava a tela do computador em um perigo para jovens solitários sem supervisão dos mais velhos, “I Saw the TV Glow” transforma o tubo de televisão em um meio que aproxima dois jovens solitários que não se encaixam nas convenções da época, sem abandonar as problemáticas inspiradas pelas telas. Dessa vez, porém, ela é externa. 

Owen e Maddy são jovens em idades distintas e posições diferentes, mas encontram no conforto do sofá uma parceira que os transporta para um universo distante da realidade – mas não tão distante assim. Como uma diretora trans não-binária, Schoenbrun conduz questões sobre identidade para o univeso colorido e eletrizante de seu terceiro longa-metragem, entrelaçando essas questões com a nostalgia de um tempo que passou e não volta mais. Especificamente, Schoenbrun recria o sentimento de uma geração eletrizada pelos programas de TV que, inicialmente, eram assistidos sem poder de escolha, mas que se tornaram parte da identidade dos jovens consumidores. 

Filhos de pais conservadores, Owen vê em Maddy uma companhia que transcende a realidade, numa fronteira que dissipa entre ela e a ficção. Assim como Owen, a jovem enfrenta relacionamentos conturbados dentro e fora de casa e a represália da amiga ao revelar sua sexualidade. Maddy gosta de garotas, enquanto Owen afirma gostar de programas de TV, sem imaginar o peso que “The Pink Opaque” terá em sua jornada de autodescoberta.

“I Saw the TV Glow” é um ode para a passagem do tempo.
Foto: Divulgação/A24

Desse modo, o programa de TV se torna uma fuga da realidade tanto para Owen quanto Maddy, e transforma “I Saw the TV Glow” em um mundo de sonhos que estabelece um elo entre ficção e realidade. Principalmente, representa a formação de uma geração de consumidores dos anos 90, que tinham a televisão como o centro de seu lares. Em certo dia, Maddy convida Owen para fugir com ela e, assim, escapar da realidade que os permeia. No entanto, Owen recusa a oferta da única amiga, sentindo-se desesperado diante da ideia de fugir.

Quando Maddy desaparece sem deixar rastros, restando apenas a televisão queimando no quintal, a realidade que um dia existiu entre ambos se dissipa na memória, juntamente com “The Pink Opaque”, que se torna parte crucial da narrativa. Assim, Schoenbrun nos apresenta um terror angustiante, que não se foca em seres sobrenaturais, mas sim no terror da realidade, no medo de não se tornar alguém relevante. 

Portanto, longe de uma vida de fantasias, Owen vê o tempo passar no piloto automático, seguindo uma série de protocolos: ele se forma no colégio, arruma um emprego, ajuda em casa, troca a televisão de tubo por uma plana, assina uma plataforma de streaming e permanece no mesmo emprego. Sem a autenticidade de Maddy, Owen envelhece, e Schoenbrun transforma o passar do tempo em uma jornada angustiante de ser assistida, através de uma figura que nunca se permitiu ariscar ou se afastar da realidade que sempre o permeou, mas que se tornou fantasiosa, colorida e alucinante na companhia de “The Pink Opaque”, em um passado que já não pode mais ser vivido. 

Contudo, à medida que o tempo passa, a juventude se dissipa e o ordinário torna-se cada vez mais angustiante, “The Pink Opaque” acompanha esses sentimentos, perde sua magia e transforma-se em um programa horrível, numa lembrança desprovida de memórias agradáveis, apenas o peso de uma vida, o medo de ser. Através de gritos torturantes, restou apenas a solidão, o desconforto causado pelo rosa neon, a completa insignificância do existir. Conforme Owen abre o peito, o brilho alucinógeno da fantasia retorna, revelando sua conexão com outra dimensão, em um corpo marcado pelo tempo, que seguiu a vida, mas sempre se perguntou se Maddy estava certa. Se aquela fantasia era realmente real ou apenas uma imaginação fértil de sua mente. Owen é resultado do feitiço do tempo, um amontado de momentos capturados das horas perdidas, do que poderia ter sido. No feitiço do tempo, cada segundo é uma nota fugaz na sinfonia da vida, tocando uma melodia que nunca se repete. E, disso, Schoenbrun compreende majestosamente bem.

Confira o trailer de “I Saw the TV Glow”:

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Isabella Breve
Isabella Breve

Graduanda em Jornalismo, leitora voraz, amante da Sétima Arte e eternamente fã.

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