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Crítica | Céu Vermelho-Sangue
No decorrer das décadas, o terror (assim como a ficção científica) passou por várias fases, concomitantes com a própria mudança gradativa da sociedade. Tivemos o Giallo, que teve seu auge na década de 1970, cujo principal expoente foi o cineasta Dario Argento; o slasher e o splatter, cujo auge se deu na década de 1980, com a disputa entre Jason e Freddy Krueger pela bilheteria, deixando Michael Myers na lanterna com sua franquia Halloween.
Depois tivemos o terror adolescente e a ascensão do terror japonês nos anos 1990; o boom dos filmes em primeira pessoa com A Bruxa de Blair e seus expoentes, REC e Cloverfield (e me reservo o direito de não mencionar o seu subtítulo brasileiro), nos anos 2000, que também foi a década dos remakes, e finalmente o pós-terror, rótulo controverso criado pelo jornalista Steve Rose, do The Guardian, ao escrever sobre o filme Ao Cair da Noite, de 2017.
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Seja como for, filmes como Deixa Ela Entrar (Låt Den Rätte Komma In), de 2008, e Byzantium (2012), deram sangue novo ao gênero. Em 23 de julho deste ano e disponível na Netflix, o britâncio-alemão Céu Vermelho-Sangue vem reforçar o gênero, não como pós-terror, mas como um filme de ação e drama na medida certa, sendo um excelente conto de vampiros.
O início do filme mostra o que já está claro na capa e dito nas entrelinhas no título: trata-se de uma história de vampiros que se passa em um avião. Mas a dúvida presente no início deixa o espectador com a pulga atrás da orelha: como tudo chegou até ali? É o que será contado no flashback, que é o início real. Não do filme, mas da história em si.
Aliás, os flashbacks ocorrem de forma sucinta, sem o tradicional “tanto tempo atrás…”. Não se tem ideia exata de o quanto o roteiro voltou no tempo e isso nem é necessário, mas fica claro pela idade de Elias, o filho de Nadja, dois dos protagonistas mais importantes da trama.
Elias é um garoto deveras inteligente e seu personagem passa longe do estereótipo da “criança inteligentinha”. Sua inteligência e consequente perspicácia são anunciadas em seu primeiro diálogo com Farid, outro protagonista que nos é apresentado, assim como sua missão, embora nem ele nem nós saibamos disso.
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A “doença misteriosa” presente na sinopse e descrita pelo garoto parece leucemia, mas está na cara que a mãe é uma vampira. Mas o mistério não está aí, mas em quê isso afetará e como isso se mostrará na história que, fatalmente, se passará dentro do avião. Bem, o diálogo de Elias com Farid já dá a pista, mas se você não pegou, relaxe! Se é que dá pra relaxar num voo que está fadado à tragédia…
A etimologia do termo “tragédia” remete ao ritual de expurgar um bode preto para morrer no deserto, dando origem à expressão “bode expiatório”. E é esse o papel que cabe a Nadja quando uma equipe de terroristas se mostra presente no voo.
Robert, o psicótico terrorista que atende pelo sugestivo apelido de Eightball (a bola oito do bilhar), perde a paciência com a protagonista e a usa de exemplo para o resto dos passageiros, no estilo que um sequestrador faria. Mal sabia ele que estava despertando seu pior pesadelo… ou ao menos o do resto de sua equipe, já que a ideia de se tornar um vampiro parece sedutora para um psicótico.
Além das excelentes atuações de Robert Sheer (Eightball), Carl Anton Koch (Elias) e Peri Baumeister (Nadja), a trama se sustenta e as cenas de ação não se passam como num filme do gênero; não se trata de um filme de ação, mas de um filme com ação. O drama é tanto do sequestro do avião em si quanto da protagonista, lutando para não sucumbir à Besta e tendo que criar o filho em sua condição vampírica.
A cena de Nadja ralhando com o menino ainda bebê na forma de uma vampira sedenta por sangue enquanto o menino chora de fome, é uma metáfora perfeita da condição de mãe solteira, dramatizada em seu (quase) frenesi. E por que usei o termo “frenesi” e a expressão “sucumbir à Besta”? Veremos no próximo tópico.
Elementos de Vampiro: A Máscara
O filme tem diversos elementos do RPG Vampiro: A Máscara. Como já citei aqui no Otageek, Mark Rein-Hagen decretou o paradigma das histórias dos sanguessugas para o século XXI. Para começar, a fisionomia de Nadja é o estereótipo do clã Nosferatu. Em diversos momentos, ela luta para não sucumbir à Besta, como falei no parágrafo anterior.
O termo Nosferatu, em latim, advém do termo grego Nosophoros*, que significa “Portador de Pragas“, designando o hospedeiro que não se contagia com o agente patogênico, apenas o transmite (como o besouro Barbeiro com a Doença de Chagas).
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Como Bram Stoker (ou ao menos sua viúva, Florence Balcombe) não liberou os direitos autorais para a reprodução de sua obra, foi feita uma adaptação alemã não oficial de Drácula em 1922 (que ganhou um remake com Willen DaFoe, dirigido por Robert Eggers, diretor de O Farol) chamada Nosferatu. O nome do clã e sua fisionomia vieram do filme e o semblante de Nadja também, já que se trata de um filme em parte alemão.
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No RPG, quando a humanidade cai a zero, o vampiro (chamado Cainita, por ser descendente de Caim) se torna totalmente bestial e irresponsável por seus atos. O jogador perde o controle sobre o seu personagem, ou seja, sai do jogo. Em diversos momentos, o narrador (como é chamado o Mestre de Jogos no sistema) pode pedir um teste de autocontrole. Caso falhe, o vampiro entra em frenesi, atacando ferozmente sem se preocupar com o risco de se machucar.
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Ao se deparar com um possível inimigo ou vítima, pode-se pedir que se faça um teste de consciência. Caso falhe, comete uma atrocidade e tem sua humanidade reduzida. Isso caso pertença à Camarilla (uma das seitas do jogo) ou seja de um clã independente. Caso pertença ao Sabá (a seita rival), o vampiro faz constantemente um teste de instintos ao invés de autocontrole e entra em frenesi caso tenha sucesso. Ele é estimulado a entrar em frenesi. Do ponto de vista da psicanálise, poderíamos traçar um correlato da Besta com o Id freudiano. Poder-se-ia dizer que o vampiro tomado pela Besta é puro Id.
Como Eightball já possuía humanidade baixa por ser um psicótico, não é de se admirar que tenha se deixado dominar pela Besta de bom grado. Como psicopata, ele arrumara o trabalho perfeito como terrorista. Como vampiro, atinge o potencial máximo de suas capacidades – ainda que nefastas.
Mas Voltemos à Crítica
A gradativa transformação de Nadja é perceptível e, ao contrário dos outros vampiros, cuja voz possui efeitos, percebe-se que o gutural de Nadja é da própria atriz. Há momentos em que precisa realmente ser enfática e lançar mão de sua “vampireza” para botar ordem na casa.
A sua movimentação e a de outros vampiros se dá em um fastforward, como no início de Mad Max: Estrada da Fúria. Os vampiros mais recentes demonstram respeito aos mais velhos, ainda que estes sejam apenas minutos mais velhos. E isso é demonstrado pelas atitudes, e não explicado em narração.
Nadja se equilibra na corda bamba entre seu Ego e Superego (outras duas instâncias freudianas) até chegar a um ponto que parece irreversível, para desespero de seu filho. O drama se desmembra em vários núcleos. A heroína luta para não sucumbir à Besta e deixar seu filho órfão, ou mesmo matá-lo, e para não ser imolada pelo sol que despontará no horizonte mais cedo ou mais tarde.
Já o filho luta para conservar sua mãe humana e para que não a matem. Os passageiros, por sua vez, estão às voltas com três sérios problemas: os terroristas, os vampiros e a iminente queda do avião. Por último, temos os próprios terroristas, que, de predadores, tornaram-se presas.
Assim como Invasão Zumbi (Train to Busan/Busanhaeng), Céu Vermelho-Sangue não mata ninguém de susto e nem é esse o propósito. Não se trata de um filme de terror jumpscare, mas de ação e drama com vampiros. Se você não assistiu, não sabe o que está perdendo! Esqueça o crucifixo e prepare o balde de pipocas, pois você vai mastigar compulsivamente. Só tome cuidado pra não sucumbir à Besta!
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