Crítica | ‘Barbie’ é uma sarcástica jornada de amadurecimento de uma protagonista estereotipada

Movida pela busca da personalidade, a Barbie de Greta Gerwig esbanja humor e humanidade
Pôster de divulgação de 'Barbie'. — Otageek
Margot Robbie em seu papel de Barbie Estereotipada. Foto: Divulgação/Warner Bros. Pictures

No Mundo da Barbie, qualquer tarefa é fantástica. Como numa utopia onde só há espaço para a perfeição, as diferentes versões de Barbies e as mesmices de Ken convivem em constante harmonia. Cor-de-rosa nas paredes, tardes na areia da praia, festa do pijama só para as garotas, ninguém perde tempo abrindo portas e caminhando até seu carro. Todas as funções são ocupadas pelas mulheres, afinal, a Barbie pode ser tudo o que ela quiser: jornalista, física, médica, advogada e juíza da Suprema Corte. Até no canteiro de obras ela marca território. 

A vida parece sempre uma festa, mas, para a Barbie (Margot Robbie), apenas pensar no dia a dia cor-de-rosa já não é mais o bastante. “Vocês pensam na morte?”, pergunta ela em uma das inúmeras e frequentes festas do pijama das garotas. Os pés que andavam em perfeito encaixe para os glamorosos saltos agora pisam no chão. “Seu pé está chato”, comenta as amigas, espantadas. Um acúmulo de gordura surge em sua perna. A Barbie logo descobre que está com celulite, para seu completo horror. 

Colocada nessa realidade, surge a necessidade da boneca visitar a Barbie Estranha (Kate McKinnon), renegada a viver afastada pelos habitantes da Barbielândia, em virtude do seu estado de beleza “danificado” pelos consequentes anos que passou nas mãos de sua dona humana. Logo, ela descobre que, para entender os motivos de estar passando por tais mudanças, precisará viajar até o Mundo Real. Ao sair da maravilhosa Barbielândia, a boneca é surpreendida pelo apaixonado e sem graça Ken, uma versão que parece existir unicamente como par romântico da protagonista. Dentro do conversível, de barco, bicicleta e até mesmo em um foguete, a chegada até o Mundo Real é em companhia dos trajes chamativos agregados aos patins verde-limão. Imediatamente, Barbie e Ken descobrem um mundo governado por homens, onde a existência das diversas versões de Barbies não resolveram questões como feminismo e igualdade — como era pré-estabelecido por ela. 

Inserida nessa realidade, a Barbie dá de cara com a própria Mattel, gerida por Will Ferrell. De imediato, ela pergunta à multidão de homens dentro da sala onde estão as mulheres que trabalham na empresa. Não há mulheres na gerência da Mattel. As pessoas responsáveis por gerir os brinquedos que vão parar nas mãos de meninas são, na verdade, homens. Não é esse um exemplo de situações absurdas que estão em nosso cotidiano?

O Ken, por outro lado, acha a realidade toda muito interessante, já que sempre foi renegado a viver nas sombras da Barbie. Os detalhes a partir daqui, porém, merecem ser descobertos na sala do cinema. 

Pôster de divulgação de 'Barbie'. — Otageek
No Mundo Real, ela não é mais a rainha. Foto: Divulgação/Warner Bros. Pictures 

Nas inúmeras entrevistas que deu para promover o filme, Margot Robbie sempre insistiu em dizer que jamais imaginou que o roteiro de ‘Barbie’ veria a luz do dia. Como símbolo de gerações e de uma marca, a Barbie é a boneca mais famosa do planeta. Desde seu lançamento em 1959, ela ganhou centenas de versões, profissões e roupas. Ela também é a representação de um padrão de beleza incansável que a sociedade insistiu em exigir por muito tempo. Quando decidiu assumir o projeto de ‘Barbie’, a escolha parecia atípica para Greta Gerwig, responsável pelos aclamados ‘Lady Bird’ (2017) e ‘Adoráveis Mulheres’ (2019), sempre avessa aos holofotes dos grandes blockbusters. Com ‘Barbie’, a diretora norte-americana precisou manter sua autenticidade em meio ao envolvimento das duas grandes empresas — Warner e Mattel — e lidar não só com a imagem da boneca presente no imaginário popular, mas também de ser uma produção que atua como um exercício de branding. 

No roteiro sarcástico de Gerwig e Noah Baumbach, ‘Barbie’ é uma aventura de amadurecimento que trabalha com a inocência e perfeição da Barbielândia, e prova que nem a vida em plástico é fantástica. Com comentários críticos, que incluem questionar como uma indústria de brinquedos conseguiu perpetuar ideais de beleza e criar diversas versões da Barbie apenas para fins capitalistas, o deboche atua como grande aliado ao roteiro dos cineastas. A metalinguagem não é novidade no cinema. Rir de si mesmo também não. É uma forma de se conectar com os telespectadores, mostrar “resultados” e oferecer críticas aos consumidores de uma nova geração, que constantemente criticam seus próprios hábitos e o de uma sociedade inteira sobre o consumismo. Agora você entende o que Robbie quis dizer com “como permitiram que fizéssemos esse filme”?

Entretanto, apesar de inúmeros comentários sarcásticos e engraçados que insiste em fazer, o exercício de se autocriticar é uma artimanha do capitalismo que, no fim, se transformará em mercadoria. Sim, é para rir. Mas, no fundo, faz questionar a existência de um filme que contou com um marketing incansável da Warner, e a apropriação da boneca para a criação de novas mercadorias. Café, roupas, itens decorativos, o mundo foi inundado, novamente, pelo cor-de-rosa da Barbie. 

Greta Gerwig sempre fez questão de insistir na “artificialidade autêntica” de seu filme. Na obra, a tal da artificiliadade está atrelada ao cenário da Barbielândia, um dos grandes destaques do filme. É em meio aos objetos de plástico, as casas com portas abertas, o carro cor-de-rosa, que Gerwig constrói um mundo de sonhos e superficialidade, que jamais se confunde com o Mundo Real. Ela se comunica, principalmente, com a geração que passou a infância na companhia dos acessórios e as diferentes versões da Barbie e que, dessa forma, entendem o peso da vida que deixou de ser mera brincadeira. É um conjunto de cenas aliadas aos fan-services, aqueles capazes de entender as referências de entrar no carro cor-de-rosa sem precisar caminhar, tomar banho em um chuveiro sem água, e pentear os cabelos com escovas desproporcionais. Ao mesmo tempo que situa o local no campo da fantasia e, assim, presta uma crítica às questões referentes a superficialidade, patriarcado e feminismo. 

Enquanto constrói esse imenso mundo de possibilidades onde tudo é sinônimo de diversão, Gerwig nos apresenta a Barbie Estereotipada — com a mesma nomenclatura. “Quando as pessoas pensam na Barbie, é a minha imagem que elas veem”, diz a personagem da Margot Robbie. A partir das questões provocadas pela crise existencial da personagem — que merecem ser descobertas por conta própria — Robbie confere doçura e inocência a sua personagem, sempre capaz de arrancar a risada do espectador. Afinal, o humor serve como rota de fuga para tratar sobre temas complexos, mas que por vezes acompanha de discursos batidos e que parecem existir apenas para rodar uma máquina de milhões de dólares. Em particular, é preciso lidar com o legado de uma boneca que diz às garotas que elas podem ser o que quiserem, mas dentro dos conformes de um padrão estético. 

Por outro lado, o Ken de Ryan Gosling é uma espécie de pateta que depende dos sorrisos da Barbie para tornar seu dia melhor. É exatamente a encarnação de como o Ken deve ser. Ele vira um alívio cômico, um objeto para explicar a mecânica da masculinidade tóxica e seu patriarcado, através dos seus números musicais e das decisões desencadeadas pela sua visita ao Mundo Real. Já a Barbie é o coração do filme, o sentimentalismo, companheirismo, as escolhas de vida e seus consequentes questionamentos. Afinal, quem é a Barbie? 

Robbie rouba a cena com sua perfeita personificação da personagem, que inclui desde sua aparência — também “zoada” pelo próprio roteiro — até sua atuação no papel da boneca mais famosa do mundo. Ela encontra em Gerwig, uma companheira para trabalhar as questões referentes ao feminino, o amadurecimento de uma personagem que sempre viveu em um mundo de contos de fadas, sem se preocupar com questões referentes à crise existencial e a sua morte. O arco da Barbie, em suma, trata da humanização de uma boneca que permaneceu no campo da ingenuidade e perfeição no imaginário popular. Afinal, questões referentes à vida e a quem somos não passam despercebidos, até mesmo pela Barbie.

Infelizmente, certas escolhas configuram ‘Barbie’ na linha da própria encarnação daquilo que critica. Assim como toda questão referente ao consumismo, personagens que saíram de linha são renegados a partilharem apenas algumas cenas com os outros personagens. É a realidade de Allan, personagem criado nos 1960, o único a não ser hétero e não ter o nome de Ken entre os bonecos masculinos. Já Midge, a Barbie Grávida, também uma invenção da mesma década — removida das prateleiras por ser criticada pelos consumidores, que alegavam que a boneca promovia gravidez na adolescência — é esquecida, e parece entrar em cena apenas para diálogos críticos à própria Mattel. Sim, são piadas muito boas. Mas que são retrocedidas com a decisão de não “dar palco” para a aparição da personagem. A piada não é única na acidez. Em outro momento, a Barbie Estereotipada chora ao ser acusada de fascista. Ou quando as bonecas ensinam umas às outras truques infalíveis para conquistar um cara, numa tentativa de elucidar como os homens gostam de “mulheres frágeis e burras”, que precisam ser salvas a todo instante. “Diga a ele que nunca viu ‘O Poderoso Chefão’ e peça para que ele explique o filme”, diz uma das bonecas. Ou para explicar as regras do golfe e como usar o Photoshop. Até a versão de ‘Liga da Justiça’ (2021), de Zack Snyder, não passou despercebida pelo roteiro. Puro divertimento. 

É na simplicidade que ‘Barbie’ trata de questões de gênero, e propicia questões profundas desencadeadas além das salas dos cinemas. Greta Gerwig sabe que está fazendo um filme da Barbie, para pessoas que querem ver a Barbie; sua inocência, simplicidade, e a vida cor-de-rosa. Na jornada da boneca, nem mesmo a vida em plástico é fantástica. Gerwig vê beleza na geração de crianças que teve as bonecas Barbies como máxima companhia, e confere significado à trajetória de amadurecimento da protagonista e à criação do universo. Por mais belo que seja o percurso da Barbie, o fim sempre leva à morte. É na mistura de nostalgia e encantamento que Gerwig e Robbie se comunicam com meninas e mulheres. Na busca por significado, o autêntico é sempre melhor que o artificial. É isso que faz a beleza de ‘Barbie’

NOTA: ★★★★

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Isabella Breve
Isabella Breve

Graduanda em Jornalismo, leitora voraz, amante da Sétima Arte e eternamente fã.

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