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Crítica | 1º Festival de Cinema Brasileiro Fantástico Online
De 19 a 31 de maio rolou o 1º Festival de Cinema Brasileiro Fantástico, disponibilizado gratuitamente e online. Com o patrocínio da Lei Federal Aldir Blanc (Nº 14.017 de 29/06/2020) através do edital Fomenta Festivais RJ, o Governo do Estado e a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro fomenta um festival de Cinema Fantástico (leia-se, ficção científica, terror e realismo fantástico), coisa rara em nosso país, embora tenhamos um grande público consumidor dos temas.
Porém, assistindo a alguns dos curtas (o que foi difícil para este que vos escreve), percebe-se o porquê da pouca procura e aceitação dos gêneros por parte do público brasileiro. Não, não estou me referindo à procura pelos gêneros (pois, como disse no primeiro parágrafo, há um grande interesse do público nacional), mas às fraquíssimas produções brasileiras.
Felizmente, deixamos para trás a influência nefasta das pornochanchadas (que nada mais eram do que um pastiche dos exploitations, vistas como “marco” no cinema nacional) com produções como Mata Negra, O Rastro e Desalma, mas ainda não matamos ninguém de susto. É realmente aterrorizante ver como trabalhamos mal o imaginário popular, nosso rico folclore e mesmo temas universais na forma de distopias que não passam de pálidas imitações de tudo o que já foi feito mundialmente.
A mostra se dividiu em dois grupos: Inéditos no Brasil e Realizadores Fluminenses, a primeira com 13 filmes e a segunda com 9.
Vamos agora conhecer algumas das produções.
Jamary
Apontado como o Labirinto do Fauno (2006) brasileiro, a semelhança mor está na criatura, o Anhangá, presente tanto na cultura Tupinambá quanto na Mawé. Antes de latir a síndrome de vira-lata, lembremos que A Forma da Água (2018), também de Guillermo Del Toro, lembra em muito a HQ Neonomicon, de Alan Moore. Embora tenha sido lançada somente em 2012 no Brasil, a HQ de Alan Moore é de 2003. Digamos que Neonomicon é A Forma da Água versão hardcore.
Na versão Tupinambá, ele é um metamorfo capaz de atormentar os vivos e interceptar a alma dos mortos impedindo-os de prosseguir ao Guajupiá, o Paraíso Tupi, tal qual o Valhalla, os Campos Elísios ou qualquer reino post mortem. Na versão Mawé, é uma criatura que anda pelas matas a ludibriar os transeuntes e, no filme, ele o faz como o Caipora, com o intuito de atrasar o lado dos que praticam queimadas.
Ane (Julia Cabral) vai dar um rolé¹ com os primos e adentra numa picada² no mato perto de sua casa, onde acaba se deparando com o ente mitológico. A despeito da semelhança com o personagem interpretado pelo ator Doug Jones, a atriz Elisa Telles ficou ótima como o fauno tupiniquim. É como se a criatura fosse feita de plantas e sua aparência se camufla na floresta.
1- Dar um rolé- dar uma volta em carioquês. Diferente de “Rolê”, em paulistês, que significa tanto “dar uma volta” quanto o escopo.
Ex.: 1) “Não é o meu rolê.” ≅ Não é a minha área de atuação.
Ex.: 2) “Não é do rolê.” ≅ Não é do métier. ≅ Não é do escopo.
2- Picada- Nada a ver com picada de inseto. Trata-se de um caminho no mato, mais estreito do que uma trilha.
Ditadura Roxa
Quando li a sinopse, pensei se tratar de algo como Os Azuis, de Maurício de Souza, ou Penas, de Laerte, mas o desenrolar da trama se assemelha muito mais a Gattaca (1997) – e me recuso a colocar o subtítulo brasileiro.
Numa sociedade deveras maniqueísta, há duas classes sociais: os ricos e o clericato têm a face roxa, enquanto os pobres e o proletariado, verde. A classe roxa fala uma língua de assovios, assim como ocorre em alguns jogos da equipe tcheca Amanita Design, e não é apenas nesse, mas em outros filmes da mostra. Pergunto-me se houve inspiração neles ou se essa é uma tendência atual.
Yeda, uma mulher verde que vende pães para se sustentar e a seu marido enfermo descola a fita para emergir socialmente mediante uma cirurgia estética a qual os roxos chamam de “Vitiligo Acrofacial.” A despeito da excelente atuação de Meibe Rodrigues, o subtexto é óbvio e didático. O final em aberto também não empolga e é uma técnica mal utilizada por esse e outros filmes da mostra.
Mãtãnãg, A Encantada
Trata-se de uma animação simples, com desenhos que lembram muito o traço de Millôr Fernandes e a animação de Osada. Ela conta a história da Índia Mãtãnãg, que quer encontrar a alma de seu marido, morto devido à picada de uma cobra.
Através de um ritual necromântico, a índia Mãtãnãg abre o portal que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos para encontrar o espírito de seu marido, vítima de uma picada de cobra.
A animação conta uma lenda da tribo Maxakali e todos os diálogos são na língua da tribo, com legendas em português. A trilha sonora é espetacular e muito bem masterizada, dando a atmosfera necessária ao tom do filme. Quem quiser conferir a animação, porém sem as legendas, assista aqui.
Em Cima do Muro
Retratando as mazelas da sociedade atual, na qual as postagens de internet não condizem com a realidade do indivíduo, Em Cima do Muro é um musicaos (e não estou sendo pejorativo) e mostra a protagonista Amélia lutando para ser bem vista nas redes sociais e escapar de sua solidão.
As composições são excelentes e o filme cumpre o seu papel como musical, salvo por uma falha de uma atriz no tempo do vocal durante o refrão, que erra em 11’52” para 11’53”. Mas isso foi uma falha mais da direção de som, que deixou passar batido.
Embora essa seja a premissa, o cerne da questão está incutido no título, pois a protagonista, querendo reputação, faz-se de “isentona” e paga o preço por isso. A ideia de ganhar likes para ser feliz já foi trabalhada, por exemplo, no primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror, Nosedive, com uma trama muito melhor costurada.
As atuações, com exceção da protagonista, são boas e os atores realmente cantam bem, mas o que deveria ser engraçado é trágico de tão ruim e o que era para ser trágico é risível, pelo mesmo motivo. A premissa base proposta no título acaba ficando em segundo plano e a solidão preenchida pela atuação virtual é o que vem à tona. Lembro-me até de uma crítica que li há anos sobre o primeiro álbum do System of a Down, pois Em Cima do Muro “atira contra alvos fáceis”, como dizia a crítica. Não acho que ela se aplique à banda, mas com certeza a esse filme.
Fragile
Chegamos ao melhor filme do festival, sem dúvida (se não é o único realmente bom)! Fragile mostra o cotidiano de Mr. Nakashima, um senhor de idade solteiro que vive uma vida solitária e possui um determinado cômodo lacrado com fitas zebradas.
Sua vida ganha sentido novamente. Cansado daquela existência misantrópica, Nakashima decide comprar um robô que auxilia nos afazeres domésticos e ainda tem dotes artísticos.
O filme foi premiado pela AT&T na categoria New Forms of Storytelling (entregue pelas mãos de Cathy Yan, diretora de Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa) e chamou a atenção por ser todo feito com marionetes. Apenas duas cenas utilizaram animação e o cineasta mineiro Ramon Faria disse que, embora já tenha trabalhado com stop motion, preferiu fazer algo com bonecos.
O cineasta conta que sempre curtiu desenhar velhinhos e se inspirou num documentário sobre idosos japoneses que vivem sozinhos. O nome do personagem é o sobrenome de Ypê Nakashima, um dos primeiros animadores do Brasil.
E o filme não peca em nada: roteiro, direção, efeitos sonoros… tudo para contar uma história lúdica, sem o mimimi de que a interação do homem com a máquina seja algo nocivo; pelo contrário, mostra a perfeita interação de uma pessoa da terceira idade com um personagem que é o fino da engenharia mecatrônica. Além disso, demonstra como Mr. Nakashima, através de seu novo amigo, redescobre o seu verdadeiro “Eu”, confinado há anos.
Estranhamente, o 1º FCBF categoriza o filme como pernambucano (de Recife), sendo que o cineasta é mineiro, e o coloca como Inédito no Brasil, sendo que já foi exibido no Cine Santa Teresa, no Festival Lumiar e no Cinemateca da Casa Mascate.
Conte Sua História ou Entregue Sua Alma
Mais uma vez uma boa ideia mal executada. Thômas (isso lá é nome de brasileiro? ainda mais com acento), um garoto “valentão”, é deixado de castigo em seu quarto por sua mãe e se depara com um livro em branco que, de repente, aparece com páginas escritas com sua própria letra. À media que lê o livro, as coisas que ali estão escritas vão acontecendo com ele.
Metalinguagem? Confere. Filme de terror com crianças? Ótimo! Só que não! Não é de terror, embora as referências saltem aos olhos e sejam propositais – e isso é ótimo! As gêmeas “trevosinhas” presentes em O Iluminado (1980) e novamente no jogo The Suffering (2004), por exemplo.
A ideia do livro que narra o destino ou que materializa o que nele é escrito está presente em diversas histórias e é um clichê que sempre funciona! O Livro do Destino, de Malba Tahan; o Death Note, do mangá e anime homônimos e até o livro infantil presente em Babadook (2014), que ou prestou uma homenagem ao clássico Ju On (2003)(infamemente traduzido como O Grito) ou o plagiou descaradamente… e ainda vou comentar isso num próximo artigo.
A interpretação das crianças é tenebrosa e não é por culpa das mesmas, mas da direção, que deve tê-las convencido de que atuaram muito bem. Isso é horrendo, porque provavelmente vão crescer e se tonar “grandes” atores de novelas.
A sinopse e os diálogos contam que (me recuso a repetir o nome do protagonista) era um garoto que pilhava* os demais e só fazia m*rda (porque, convenhamos, não se chama ninguém de valentão desde que década? ah, eles traduziram tough guy, tá certo!), mas não há nenhuma cena, nenhum flashback ou nenhum indício no próprio personagem que demonstre isso. Ele simplesmente aceita a bronca da mãe e fica chateado, jururu, tadinho, por ter sido deixado de castigo no quarto.
*Fazia bullying em carioquês
Uma das amigas, que atende pelo sugestivo nome de Morgana, diz a ele: “Quem falou que o quarto é seu?”, numa clara referência a Zé Pequeno, vilão do filme Cidade de Deus. Nada contra alusões, mas só porque o filme é com crianças, não precisa ser necessariamente didático.
O Prazer de Matar Insetos
Excelente fotografia e premissa! Um padre e uma freira habitam um mundo onde todos os insetos estão extintos. O filme não especifica se são apenas insetos ou todos os artrópodes, e provavelmente só a minha cabeça de nerd chato é que cogitou isso. Não estou dizendo que os nerds são chatos, mas que eu sou chato… e sou nerd.
A ideia de se fazer um filme com pouquíssimos personagens, calcada praticamente em diálogos entre dois deles, de modo que a trama se desenrole apenas no que o espectador imagina, tem grandes chances de dar errado… e não é o que acontece. Assim como em Festim Diabólico (Rope – 1948), O Prazer de Matar Insetos prende a atenção do espectador mesmo não sendo tão minimalista quanto o filme de Hitchcock.
A máxima hermética de que “o que está em cima é como o que está embaixo” é reproduzido através de um inteligente jogo de câmera. A expressão de uma das crianças é o que poderia ter sido feita em Conte sua História ou Entregue Sua Alma, embora não fosse essa a intenção do curta supracitado.
O final em aberto pode decepcionar um pouco a alguns, já que o público brasileiro não está acostumado com a ausência de payoff. Mas se você é dos tais que curte histórias pitorescas a la Vertigo, não perca essa distopia brasileira feita com o mínimo de recurso. Tá bom, eu exagerei em comparar com a Vertigo, mas atualmente está muito aquém da original.
Nada de Bom Acontece Depois dos 30
Outra aposta de distopia que nos faz pensar o que seria possível ao Brasil com mais recursos (leia-se, investimento) e produção. Embora resultados pífios tenham sido atingidos com uma produção precária e mambembe como o franco-belga Metal Hurlant Chronicles, Nada de Bom Acontece Depois dos 30 mostra que é possível fazer muito com pouco.
Em 2034, a longevidade é tão longínqua que a imortalidade é alcançada. Trocando em miúdos, ninguém mais “morre de velho”. Os recursos se tornam escassos e o governo então cria uma medida: todos os que atingem os 30 anos devem morrer(!).
E não se trata de uma execução sumária, mas de uma morte voluntária, mas não de suicídio. Ao completar 30 anos, as pessoas simplesmente morrem… e não vou dar spoiler do porquê ou de que forma. Mas vou dar spoiler de outra coisa.
O protagonista, vivido por Pedro Nercessian, decide não morrer. “Mas por que você não quer morrer? Nada de bom acontece depois dos trinta!” – afirma o gado humano que gentilmente entrega sua vida no auge de sua balzaquianice – o que acarreta no cancelamento do protagonista no encontro virtual realizado quase na forma de uma gamificação, como no filme L’autre Monde.
Assim como em Bad Boy, O Show de Truman e tantos outros, Nada de Bom (…) é quase uma releitura d’O Mito da Caverna, de Platão, e ainda vou falar dessas obras que fizeram uma releitura do mito aqui no Otageek. Para finalizar, o filme ainda arrisca um cyberpunk, com o personagem incorrendo em transumanismo.
[…] Babado- notícia, fofoca, boato. Notícia “da hora”, como o correlato em inglês, News. Também pode significar escopo, área de atuação ou métier, como o correlato em paulistês, Rolê. […]
[…] Crítica | 1º Festival de Cinema Brasileiro Fantástico […]
[…] Matt se casou com uma filipina, o que rendeu a continuação de Neverending Nightmares: Devastated Dreams. Desta vez, o jogador encarna uma mulher grávida que tem que proteger o seu filho dos ataques da entidade filipina Aswang, a qual devora a alma de crianças e fetos. Essa é a versão filipina do Lâmio grego e, de certa forma, até do nosso Jurupari. […]