Crítica | “Polytechnique”, de Denis Villeneuve: alteridade e crítica em meio à tragédia

Em “Polytechnique”, seu terceiro longa-metragem, o cineasta canadense Denis Villeneuve uniu duas das temáticas mais marcantes de sua filmografia: a alteridade e a violência.

Atenção: esta crítica pode conter SPOILERS!

Cena do filme Polytechnique (2009), de Denis Villeneuve. Nela, em preto-e-branco, vemos a personagem Valérie em um banheiro, através de um jogo duplo de espelhos, que a multiplica. Valérie tem cabelos curtos e está no canto esquerdo da imagem, jogando um papel no lixo, vestindo um blazer e saia.

Insatisfeito com o resultado final de seus dois primeiros longas-metragens (32 de Agosto na Terra, de 1998, disponível no Mubi; e Redemoinho, do ano 2000), o cineasta canadense Denis Villeneuve resolveu que ficaria em casa criando os filhos até que surgisse a possibilidade de dirigir um filme do qual se orgulhasse.

Gradualmente, já na segunda metade dos anos 2000, dirigiu dois curtas-metragens, 120 Seconds to Get Elected (2006) e Next Floor (2008), mas só em 2009 o tal filme para se orgulhar veio, e era Polytechnique (2009).

Em Polytechnique, vemos a história real de um crime de ódio. O assassino (que nunca é citado pelo nome, e sobre o qual não nos é apresentada nenhuma história de vida prévia a não ser a que ele mesmo conta brevemente em seu monólogo no voiceover da abertura do longa) entrou na Escola Politécnica de Montreal e assassinou 14 mulheres, ferindo dez outras e, também, quatro homens, sob o pretexto de “combater o feminismo”, e depois se suicidou.

O jovem odiava mulheres (em especial, as feministas) e as considerava aproveitadoras baratas e oportunistas, escandalosas que haviam arruinado sua vida – apresentando, portanto, uma visão do Outro completamente distorcida.

A alteridade – a percepção do Outro – é o tema central deste filme, e uma temática que Villeneuve sempre retoma em suas obras: de Incêndios (2010) a Blade Runner 2049 (2017), todas as suas produções seguintes abordam, de uma forma ou de outra, o medo do Outro (e este Outro, geralmente, é o protagonista).

Esta abordagem sobre o medo, repulsa ou rejeição ao Outro, em Polytechnique, é apresentada não apenas no ataque virulento realizado pelo assassino, mas também em outros detalhes: em uma entrevista para um estágio, a protagonista Valérie (Karine Vanasse, também produtora do filme) ouve de seu entrevistador que talvez deveria ter feito engenharia civil, pois era mais “fácil para poder cuidar da família”.

Isso implica, assim, que o pertencimento à uma família nuclear e tradicional seja um papel não apenas inevitável a todas as mulheres, mas também desejável e exclusivo a elas – e retrata, portanto, um preconceito e uma noção muito distorcida que ainda atormenta as mulheres, no mercado de trabalho e fora dele, nos dias de hoje, 32 anos depois do massacre em Montréal e 12 anos após o lançamento do filme.

Sendo Polytechnique uma obra sobre um evento tão traumático para a memória coletiva do povo canadense, é de fato impressionante que Villeneuve tenha conseguido tratar de um tema tão delicado enquanto aborda uma questão que nitidamente lhe é tão cara, sem que o filme tenha se tornado enfadonho ou descambado para a romantização, como acontece bem mais do que deveria quando se fazem filmes sobre estes eventos trágicos (vide Elefante, de Gus Van Sant).

A direção imersiva de Villeneuve, combinada à fotografia em preto-e-branco (escolhida propositalmente para não expor um excesso de sangue de forma estilizada, quiçá romantizada) de Pierre Gill, são responsáveis pelo tom sóbrio do filme.

Já sabemos, desde os créditos e a cena iniciais, o que vai acontecer; portanto, Villeneuve faz o que pode para prender o público: cria empatia com as potenciais vítimas, nos apresentando aos amigos Jean-François (Sebástien Huberdeau), Stéphanie (Evelyne Brochu, a Delphine de Orphan Black) e Valérie, e gera tensão a partir das interações entre eles, além de alternar entre pontos de vista, ora focando em JF, ora focando em Valérie e Stéphanie.

Se já sabemos o que vai acontecer, qualquer coisa antes que o assassino sem nome (interpretado por Maxim Gaudette em sua primeira parceria com Villeneuve, sendo a segunda Incêndios, de 2010) entre em ação é motivo de tensão.

Sabendo disso, o diretor alterna entre planos bem abertos, quando grava multidões de alunos, imaginando que o espectador vá procurar pelo rosto do assassino, aguardando o inevitável; e planos mais fechados, pressupondo que o público espere por um tiro do nada, como ocorre logo na primeira cena no Xerox, antes dos créditos iniciais, tendo em vista que o filme se propõe, desde o início, a não ser uma reconstituição dos fatos, em respeito às memórias das vítimas.

Uma cena em plano-sequência, que acompanha Valérie e Stephanie pelos corredores da Escola Politécnica, exemplifica bem a tensão que Villeneuve constrói: não há razão alguma para imaginarmos que o assassino irá aparecer naquele momento, mas sempre que a câmera vira, mostrando o corredor de forma mais ampla, esperamos que ele esteja lá, e nos perguntamos quando aquilo que já sabemos que vai acontecer de fato acontecerá.

Vale mencionar que Polytechnique também aborda as consequências do massacre: Stéphanie morreu, mas JF e Valérie nãoe ambos têm que lidar com o trauma a que foram submetidos, seja ele físico, como é o caso de Valérie (que vemos fazendo sessões de fisioterapia para voltar a andar normalmente), ou psicológico, como acontece com JF, que é engolido por um sentimento imenso de culpa por não ter feito mais, ainda que tenha feito tudo o que estava em seu alcance.

Apesar de ser apresentado como um exemplo de masculinidade alternativa à arrogância e ao machismo do assassino, JF, atormentado pela própria consciência, tem um destino cruelmente similar ao daquele que lhe tirou a paz.

Ao fim do longa, Valérie alcança seu objetivo de tornar-se engenheira aeronáutica e descobre estar grávida. Ao fazer esta descoberta, ela escreve uma carta à mãe do assassino, ainda que sem intenção de realmente enviá-la, como forma de lidar com o medo.

Medo do futuro, medo do passado, medo do que essa criança poderia vir a ser, medo do Outro – afinal, em algum ponto, a mãe do rapaz que ceifou a vida de sua melhor amiga provavelmente foi uma mulher como a própria Valérie, sentindo-se amedrontada diante das barras coloridas que teriam aparecido em seu teste de gravidez, ou talvez feliz, mas certamente sem a menor ideia de que a vida que gestava em algum momento seria capaz de cometer tamanha atrocidade.

Mas, como bem diz a própria personagem em sua carta, também narrada em voiceover (fazendo aqui uma rima narrativa com o começo do filme, que é o assassino escrevendo sua carta de suicídio), ela está “cansada de sentir medo”.

O filme, então, encerra-se com a seguinte citação: “se for um menino, vou ensiná-lo a amar. Se for uma menina, vou dizer-lhe que o mundo é dela”. Uma mensagem otimista e esperançosa para finalizar um filme poderoso e melancólico sobre a cólera daqueles que não conseguem enxergar o Outro como seu igual.

Confira o trailer de Polytechnique:

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ATENÇÃO! A versão do filme que está no MUBI é a versão anglófonao filme foi gravado duas vezes, em inglês e em francês, com as mesmas cenas e os mesmos diálogos, sem o uso de dublagem. A versão francófona não está disponível no Brasil.

Parte desta crítica é retirada da dissertação de mestrado da autora, intitulada A representação do Outro na tradução intersemiótica da novela “História da sua vida” ao filme “A chegada”. Caso queira conferir o trabalho na íntegra, basta clicar aqui.

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Gabriela Spinola
Gabriela Spinola

Tradutora, mineira, e eternamente emo.

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