Acompanhe o Otageek nas redes sociais
Crítica | ‘Mickey 17’: Morre um Mickey, nasce outro… e o existencialismo cede espaço à caricatura

Certamente havia uma pressão sobre Bong Joon-ho a respeito de seu próximo projeto após o estrondoso ‘Parasita’ (2019), filme sul-coreano que superou a barreira da legenda e fez história ao vencer o Oscar de Melhor Filme em 2020, junto a outras três categorias: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Internacional. Sua escolha, por sua vez, foi adaptar ‘Mickey 7’, ficção científica de Edward Ashton, uma narrativa que acompanha Mickey Barnes (Robert Pattinson), um homem enviado em uma missão para colonizar o planeta gelado Niflheim. Sua função é integrar um grupo de “descartáveis”, designados para tarefas perigosas que frequentemente resultam em sua morte, levando à reimpressão de suas memórias em um novo corpo idêntico ao anterior.
Não é de hoje que Bong Joon-ho explora vidas precárias e a luta de classes em seus projetos. ‘Parasita’ (2019), embora seja uma produção sul-coreana, ressoa como um retrato atemporal e universal de um sistema que rege a humanidade: o capitalismo, tornando sua crítica social facilmente reconhecível em qualquer lugar. ‘Mickey 17’ segue essa mesma lógica, ampliando a discussão para um cenário de sobrevivência extrema, onde desigualdade e exploração são levadas ao limite. O corpo humano como mercadoria, a obsessão pelo lucro e a presença de um líder megalomaníaco ditando as regras – está tudo lá.
Ao interpretar diferentes versões de Mickey, Robert Pattinson exibe sua eloquência e versatilidade, um mérito que muitos insistem em negar. Esta, talvez, seja a maior força energética de ‘Mickey 17’, uma obra que apresenta seu universo de maneira satisfatória, mas perde seu tom em dado momento, optando por seguir uma lógica política, em contraste com o existencialismo e a identidade explorados na obra original. Bong Joon-ho, contudo, já havia discutido esse aspecto, quando revelou seu interesse em adaptar a obra com base em sua essência, mas sem seguir as mesmas estruturas de Edward Ashton. Adaptar, afinal, é traduzir.
A ênfase na política resulta em uma narrativa que se assemelha, em diversos aspectos, a ‘Não Olhe para Cima’ (2021). Dessa vez, porém, a concentração não está na descrença na ciência, mas na adoração da sociedade pelo totalitarismo, o que resulta, assim, em personagens que flertam com o fascismo. São ditadores responsáveis por comandar a missão de exploração ao planeta Niflheim, interpretados por Mark Ruffalo e Toni Collette, formando o casal de político e esposa, Kenneth Marshall e Ylfa.
É de se imaginar que Kenneth e Ylfa personifiquem todas as características de um casal de ditadores: o uso da força e repressão, a concentração do poder, o controle sobre as classes mais baixas e o culto à personalidade. Bong Joon-ho, apesar de ter revelado suas inspirações em um governador dos Estados Unidos e em um político da Coreia do Sul, que sempre perde nas eleições, e não, como muitos imaginaram, na figura de Donald Trump, busca capturar o que essas figuras ditatoriais costumam ser. O resultado, porém, são figuras charlatonas excessivamente caricaturais, que falham em transmitir a verdadeira ameaça de um ditador: o poder de cativar e manipular as massas. São representações artificiais que se tornam constrangedoras. No fim, é difícil acreditar na proposta.
Ainda que o centro esteja na política, sobra espaço – ainda que modesto – para explorar o existencialismo de Mickey, um personagem que se culpa excessivamente pelas reviravoltas de sua própria vida, convicto de merecer o tratamento que recebe como um mero corpo de sofrimento, renegado a morrer dia após dia em prol do progresso de uma colônia sustentada por um ditador. Essa característica transparece até mesmo no relacionamento de Mickey com a general Nasha, por meio de uma constante reafirmação de sua impotência e insignificância perante ela. A identidade de Mickey, por sua vez, é o que parece tornar uma ínfima parte de ‘Mickey 17’ frutífera, uma abordagem trágica que suscita reflexões profundas, mas interrompida pela insistência no viés do ditador caricatural vs. os explorados.
A obra de Edward Ashton comporta uma capacidade imprescindível, inteligente e fascinante de adaptação e discussão. O rumo tomado por Bong Joon-ho, contudo, transforma-se em uma estrutura desprovida de coesão e inventividade, resultando em uma construção que opta por seguir os caminhos de personagens simulados que, salvo por Mickey, não acrescentam nada ao roteiro. ‘Mickey 17’ torna-se uma tentativa falha de abordar questões significativas e incitar diálogos, onde apenas Pattinson e as figuras alienígenas do planeta Niflheim se destacam. Contudo, as expectativas do público em relação ao projeto cabem unicamente a eles mesmos. Ter vencido um Oscar e feito história não faz de Bong Joon-ho uma figura isenta de falhas, uma fonte de brilhantismo inesgotável – algo que ele nunca foi. E ‘Mickey 17’ está aí para provar isso.
Confira o trailer de ‘Mickey 17’:
Leia também:
- Warner Bros. Pictures divulga novo trailer de Mickey 17, ficção científica que estreia em março nos cinemas
- Montagem paralela |”O Poderoso Chefão” e “Parasita”: curiosidades em comum
- Crítica | Bob Dylan é figura inalcançável movida pela música em ‘Um Completo Desconhecido’