Entenda a representação feminina da Personagem Viúva Negra – Parte II

Continuando nossa análise sobre a representação feminina da personagem Viúva Negra no cinema, finalizamos o último texto pontuando sobre o domínio da deusa arquetípica em Natasha. Ah! Se você encontrou este texto nas buscas pelo Google e não faz ideia de que texto anterior é esse, é só clicar aqui.

Manifestações da Deusa na Víuva Negra

Fase Lilith – Homem de Ferro 2 e Vingadores (2012)

Quem é Lilith: é a primeira mulher de Adão e representa a liberdade máxima do feminino, por se impor e contestar padrões estabelecidos às mulheres em inúmeros meios socioculturais. Um de seus fortes aspectos é a não submissão e obediência ao masculino. Tal figura reconhece a beleza de seu corpo e seu erotismo, recusando-se a somente satisfazer e não ser satisfeita. Lilith preferiu violar leis e regras a se submeter a elas. E por isso foi perseguida e penalizada.

Viúva Negra reconhece a beleza do seu corpo e não inibe isso, ela exala seu erotismo. Isso pode ser visto pelas roupas, como se move, na forma de falar e manipular.

Entretanto, como pontuado no Texto I, a sensualidade e erotismo têm um viés negativo. Assim, a maneira como são retratadas essas características traz o estereótipo da mulher fatal: ela possui um significativo apelo sexual através das vestimentas, usando o erotismo e suas habilidades de manipulação, disfarce e persuasão para conseguir aquilo que quer ou o que foi ordenado.

Fase Eva – Capitão América 2: Soldado Invernal e Vingadores: Era de Ultron

Vamos abordar Eva aqui a partir da perspectiva da autora Martha Robles: Eva é a mulher que nasceu da costela de Adão. A conhecemos como pecadora, aquela que foi fraca e se deixou levar pela serpente, comeu do fruto proibido e ainda corrompeu o homem, condenando a raça humana a ser expulsa do paraíso.

Diante disso, ela carrega o fardo da culpabilização. Entretanto, além dessa culpa, esta figura também carrega a força da libertação, a ousadia e o desejo da mudança, de ser algo maior e não somente fruto da costela do homem – mesmo que tenha que pagar um preço alto por isso. Ao comer a maçã, gera-se a queda do homem e corta-se sua ligação com Deus, tornando o mortal; mas se ganha o raciocínio, a sabedoria e o direito de escolher e trilhar seu caminho.

Certamente, nessa fase, a culpa pelos atos cometidos, que assombram a Viúva Negra, é o traço mais enfatizado pela personagem. No que se refere à Eva, é uma culpa que foi “acordada” por Loki na fase anterior.

Um sentimento que a incomoda tanto que ela parece não se perdoar por isso e, mesmo pertencendo à equipe, não se sente como uma dos Vingadores, e sim como a assassina que foi criada para ser.

Entretanto, ela também carrega outros traços de Eva, apresentados por sua vontade de não mais ser só uma espiã, de se libertar do seu passado ao buscar ser uma Vingadora, de deixar cair seus disfarces de defesa e ser verdadeira, alguém em quem Steve possa confiar, uma amiga.

Mesmo sabendo que tal escolha poderia ter penalizações, ela se arrisca e trilha novos caminhos, os quais lhe permitem escolhas que estavam além daquelas direcionadas a ela por ser uma ex-espiã soviética. Natasha traz, assim, a força da libertação, a ousadia e o desejo da mudança, de ser algo maior, traços encontrados em Eva.

Representações Políticas e Simbólicas de Viúva Negra e Capitão América

Perceba que, nesse processo, há uma forte influência de Steve sobre Natasha, ao seu lado na maior parte de Capitão América 2 –  Soldado Invernal. Nesse momento, suas vestes de espiã somem, dando espaço a roupas comuns e não muito justas. Decepcionado com a S.H.I.E.L.D., que estava corrompida pela HYDRA, o Capitão, implicitamente, oferece-lhe um caminho ao seu lado. Para alcançar seu objetivo de ser uma pessoa melhor e lutar pela causa certa, ela passa então a ficar sob suas ordens, e não mais as de Nick.

Em vista disso, destaca-se aqui que tanto a Viúva Negra quanto o Capitão América são representações simbólicas e políticas muito fortes: a primeira representa a antiga União Soviética e o segundo os EUA. Temos aqui representações que carregam ideologias e simbologias políticas de uma forma implícita, naturalizada através de imagens, sons, cores e movimentos. 

Fase Deméter – Capitão América: Guerra Civil; Vingadores: Guerra Infinita; Cenas pós-créditos de Capitã Marvel e Vingadores: Ultimato

Por último, temos Deméter, deusa grega que representa a primavera, a padroeira das colheitas, e está relacionada à maternidade sofredora, protetora, temerosa e possessiva. Em seu mito, sua filha Core é raptada por Hades, deus do submundo. Ela então passa alguns dias à procura da filha sem nenhuma pista, e quando finalmente descobre onde ela está, a mesma já faz parte daquele mundo e não pode mais voltar.

Com sua maternidade agredida, Deméter enche-se de muita tristeza e mágoa, que se alastra por toda a Terra, deixando a paisagem desoladora. Ela cria o inverno e nada mais cresce sem sua vontade. Perde-se a fertilidade e todos sofrem com isso. Deméter torna-se uma mãe sofredora, triste e profundamente marcada pela impotência.

1. Mãe protetora 

Nesta última fase, temos traços maternos que já mostravam seus indícios nas fases anteriores, como o cuidado. Aqui, ganharam mais espaço e visibilidade: ela é aquela que cuida, que conforta, que acolhe, que tenta apaziguar conflitos e zelar pela manutenção da paz. Tais aspectos ficam muito conectados à concepção de proteção, do proteger a família que ela construiu quando optou por ficar ao lado de Steve e treinar os novos Vingadores. 

2. De Lilith a Deméter e a influência de Steve Rogers 

Observe a imagem abaixo: até o momento, não houve grade mudança no uniforme, principalmente no que se refere ao apelo sexual. Entretanto, caso não se lembre, a partir de Capitão América: Guerra Civil, tal vestimenta aparece em apenas duas situações: uma quando estavam em um conflito interno dentro dos Vingadores e ela lutou contra o Capitão, e outra em seu sacrifício, na sua última aparição.

Já em Vingadores – Guerra Infinita, seu uniforme ganha um novo visual, perdendo significativamente o apelo sexual. Inclusive, possui tons de cores e adereços de segurança que se aproximam das características do uniforme do Capitão América. Pode ser observado também que, de forma recorrente, eles aprecem lado a lado no enquadramento, bem como Viúva Negra não recebe mais ordens do Capitão.

Diante da união entre os personagens, temos uma Viúva Negra que possui a mesma autoridade que o Steve. Neste momento, percebe-se também uma total ausência das habilidades de sedução e manipulação. Unindo os fatores de enquadramento, vestimenta e comportamento, conclui-se que ambos estão no mesmo nível hierárquico, gerando certa sensação de que cumprem os papéis de matriarca e patriarca na equipe Vingadores.

Em vista disso, temos bem forte a concepção materna, a ascensão de Deméter e o declínio de Lilith em Viúva Negra. E este processo está ligado à influência que o Capitão América exerce sobre Natasha, como se ele fosse o principal fator a direcioná-la para a mudança de femme fatale a mãe.

3. Mãe sofredora 

Outro forte traço de Deméter em Viúva Negra é o da mãe sofredora. Se antes das ações de Thanos temos o aspecto da proteção e cuidado em destaque, quando o antagonista (que aqui cumpre o papel de “raptor”) concretiza seu objetivo, temos a mãe sofredora, angustiada, que não supera a perda, com sua maternidade agredida e impotente, sem nada poder fazer.

Isso é perceptível através de sua aparência e vestes: roupas mais largas e desleixadas, meias nos lugares das botas, blusas sem decote, cabelos desbotados e necessitando de cuidados, olheiras em torno dos olhos… Ela ainda tenta liderar o que restou da equipe, porém, recusa-se a superar a perda. 

4. Ascensão de Deméter e retorno de Lilith

Por fim, apesar do mito de Deméter estar em ascensão, temos o retorno da Lilith ao final, onde podemos perceber quase um duelo entre ambos: Viúva Negra retoma com o seu uniforme de espiã e, com vestes semelhantes, temos Clint, seu parceiro antigo, espião e assassino.

Na cena, um dos dois deve se sacrificar e ambos procuram impedir que o outro o faça. Natasha revela, em um primeiro momento, que quer saltar para que todos retornem; porém, em seguida, afirma que, na verdade, era para que Clint pudesse voltar para casa. Temos, assim, a personagem movida novamente por questões pessoais e não por um ato heroico, por colocar o bem comum na frente de seus interesses. 

Retomamos o que foi descrito sobre Lilith, pois tal figura preferiu violar as leis que a levaram ao exílio e à prisão, a ser condicionada às normas sociais impostas pelos homens. Nas fases anteriores, há um homem (Steve Rogers) que ocupa um lugar central na supressão dos aspectos manipuladores, sedutores e eróticos da Viúva Negra, dando lugar aos aspectos maternos.

Contudo, as vestimentas que a personagem usa ao final desta última aparição, o fato de estar na companhia de Gavião, e não do Capitão e, principalmente, o fato de aparentemente colocar seus desejos pessoais à frente do ato heroico, podem ser interpretados como uma negação da posição que conquistou tendo que ser submissa a um homem, ao mesmo tempo em que não perde o forte apreço à “família” que ganhou.

Temos, no seu sacrifício, duas figuras arquetípicas disputando, a duplicidade do arquétipo da deusa. Diante disso, não fica claro se ela morreu como heroína ou como espiã, pois seu sacrifício oscila entre o que ela é e o que gostaria de ser. 

A donzela e a síndrome da coadjuvante hiper-competente na Viúva Negra

Já parou para pensar no quanto a Viúva Negra é mega-competente? Ela luta com seres humanos, super-humanos e alienígenas; é hacker e exerce suas técnicas de disfarce e espionagem como nenhum outro personagem masculino; sedutora e persuasiva, ela conseguiu manipular ninguém mais, ninguém menos que Loki, o deus da mentira; pilota naves, jatos e motos; manuseia armas diversas, tem ótima artilharia; é especialista em direção perigosa e salto.

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Contudo, sempre fica restrita ao lugar de coadjuvante, dando suporte aos personagens masculinos (brancos e heterossexuais), que tiveram, cada um, seus protagonismos em determinados momentos. Assim, ela carrega a síndrome da coadjuvante hiper-competente, na qual a personagem feminina é incrivelmente competente e capacitada, entretanto, não importa quantas vidas salve e o quanto lute, ela não salvará o dia e será salva por alguém do sexo masculino no final. Neste sentido, ela receberá o papel de coadjuvante e o homem o de herói, de real protagonista. 

Ressalta-se que cada filme possui cenas de combates importantes para as narrativas e, nelas, as ações dos personagens masculinos são muito destacadas; já Natasha aparece nessas cenas, na maioria das vezes, lutando ao lado de um deles ou tendo suporte dos mesmos. Não são atribuídas a ela cenas gloriosas e heroicas, apenas destinadas aos personagens masculinos.

Assim, considera-se que a pouca presença da personagem nesses momentos revela muito sobre o nível de importância que lhe é dado na narrativa. Ela está sempre ligada ao masculino e abaixo dele, bem como depende da influência de um homem (Steve Rogers) para conseguir ser a pessoa melhor que almejava. 

Como única mulher em uma equipe de seis membros, a ela também são endereçados aspectos específicos geralmente atribuídos ao seu gênero: é ela quem cuida do colega ferido, que conforta, que tenta apaziguar os ânimos, além de ser a que menos se pronuncia nas discussões de equipe.

Por vezes, os aspectos maternos por ela representados são um reflexo das normas e regras do gênero e da sociedade patriarcal, especialmente quando observamos como, por vezes, a personagem precisou ser salva ou ajudada por um personagem masculino, o que a coloca em posição de donzela.

Viúva Negra em um lugar já visto, já dito e já assistido 

Lembra que discutimos sobre o conceito de estereótipos lá no primeiro texto:

O estereótipo seria o resultado da nossa visão enviesada sobre as coisas e as pessoas. Afinal, já parou para pensar que o nosso julgamento ou entendimento sobre circunstâncias, situações e pessoas está muito ligado ao meio sociocultural em que vivemos, as opiniões e comportamentos que absorvemos para nós? Assim, por vezes definimos o que é algo antes de observá-lo de fato. Nota-se também que essa definição se baseia em poucas ou apenas uma característica que este “algo” possui, excluindo, resumindo ou até substituindo todo um universo de aspectos que tal poderia ter.

Ao final desta leitura, perceba que, apesar de carregar arquétipos e mitos com grandes complexidades simbólicas e muitas características, Viúva Negra possui características específicas enfatizadas em cada mito: Lilith – sedução e erotismo – Eva – culpa – e Deméter – proteção e sofrimento materno.

Note como há características resumidas, excluídas e substituídas, tendo só um aspecto enfatizado, e tal aspecto é sempre aquele direcionado às mulheres por pertencerem ao gênero feminino: funções e ações da esfera familiar e o lugar de alguém frágil, que precisa ser salvo. Em contrapartida, os personagens masculinos possuem uma multiplicidades de papeis.

Uma vez que a trajetória da personagem sai do lugar de espiã (que ela renega), onde está presente a concepção negativa da femme fatale, e conduz ao processo de ser uma heroína (que ela almeja), aproximando-se de aspectos maternos, conclui-se que seu crescimento dentro da narrativa se dá sempre permeado pela submissão: ela deixa de obedecer às organizações de espionagem (KGB e S.H.I.E.L.D.) para ser submissa às relações afetivas que criou com os Vingadores, especialmente com Capitão América.

Deste modo, sua representação feminina é definida pelas normas do gênero, sendo ele também um dos fatores que contribuem para a construção dos estereótipos. E assim, como muitas personagens femininas, Viúva Negra marca uma presença em lugares e ações já determinadas e óbvias, desempenhando papéis estabelecidos às mulheres – a sedução, o cuidado, a maternidade. Sua representação feminina engloba muito o já visto, o já dito e assistido, apenas sendo contado de maneira diferente.

Como falamos anteriormente, não encarem esta análise como uma verdade absoluta! Ela vem de uma pesquisa acadêmica que abre vários caminhos e novos estudos sobre essa personagem e sua representação feminina.

Inclusive, seu filme solo pode trazer novas possibilidades para sua construção e para a representação que ela pode constituir. Em particular, destaca-se o fato do longa ter sido dirigido pela australiana Cate Shortland, o que permite observar possíveis distinções desta construção a partir de um olhar feminino.

Espero que, ao final da leitura, você tenha refletido sobre a construção das personagens femininas e a importância de melhores representações das mesmas. Afinal, apesar de inicialmente serem apenas filmes de entretenimento, olhe quantos significados implícitos trouxemos aqui, que podem reproduzir e fortalecer padrões de comportamento, gênero, ideologias e relações de poder.

Este texto foi baseado no Artigo de trabalho de conclusão de curso: Uma Deusa coadjuvante, femme fatale, mãe sofredora: arquétipos, estereótipos e representação feminina na construção da personagem Viúva Negra no cinema – Ainda não publicado