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Crítica | KBELA “para todas as mulheres negras do mundo”
Escova definitiva e inteligente, guanidina, progressiva, relaxamento capilar, entre outros tipos de alisamentos capilares. Esses, que até pouco tempo atrás, eram a “maneira mais adequada” de mulheres com cabelos crespos e cacheados, especialmente as pretas, “arrumarem” seus cabelos, de estarem dentro do padrão de beleza exigido pela sociedade. Isso é abordado em KBELA.
Atualmente, algumas coisas mudaram e muitas mulheres têm passado por um processo de aceitação dos cabelos naturais, que gera não só empoderamento, como também certo encontro consigo mesma. Todavia, a transição capilar é um processo que afeta fisicamente e psicologicamente a mulher.
Afinal, o cabelo, por muito tempo, foi seu grande inimigo, uns dos motivos que impediam as mulheres pretas de se sentirem e serem vistas como “belas”, o mesmo cabelo que era taxado como bombril, pixaim, cabelo duro, entre outras nomeações pejorativas e racistas.
Ainda crianças, mulheres precisavam passar por processos químicos para serem aceitas na sociedade até um ponto em que elas próprias passaram a reproduzir e naturalizar essa norma de estética capilar. E tudo isso ganha um grau de complexidade maior pela ausência de representatividade na mídia.
Essas e outras coisas associadas ao cabelo crespo e cacheado afro-descendente são apresentadas no curta-metragem brasileiro KBELA (2015), uma produção que pode ser considerada quase uma obra autobiográfica, pois carrega muito do que é vivenciado por muitas mulheres brasileiras.
A narrativa não é linear e traz, através de ângulos, imagens e simbologias sociais, referências que remetem ao cabelo afro-descendente, o símbolo de resistência que ele representa e o racismo ainda tão presente na sociedade.
Roteirizado e dirigido pela cineasta brasileira Yasmin Thayná, KBELA tem como elenco Isabél Zuaa, Dai Ramos, Ana Magalhães, Maria Clara Araújo, Sara Hana, Marcelly Knowles Jackson, Ana Beatriz Silva, Livia Laso, Taís de Amorim e Monique Rocco.
Sim! KBELA é um filme feito por mulheres e protagonizado por mulheres, como diria a Yasmin: “ele é um filme sobre ser mulher e torna-se negra”. As mulheres pretas são as protagonistas, no curta elas não são erotizadas, violadas ou mortas, e sim encontram-se consigo mesmas.
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A direção a partir da lente e mente de uma mulher
Na narrativa, apesar de haver certo nu feminino, não há erotização e objetificação do corpo negro, algo comumente visto em outras obras cinematográficas. Isso se justifica, principalmente, pois agora temos uma diretora e roteirista mulher e é sob o olhar dela que o corpo das personagens é apresentado.
Os cabelos e ausência de diálogos
Em KBELA, a diretora escolhe formas simbólicas para representar o sofrimento das mulheres, seja através de lágrimas, sacos plásticos, a pele pintada de branco, entre outras situações que trazem a violência física e psicológica imposta a elas. Com a ausência de diálogos em tais cenas, reforça-se o quanto este sofrimento é aprisionado e sem voz, sem liberdade, o quanto a opressão sobre o cabelo sufoca.
Outra crítica que a diretora traz em KBELA não trata somente da determinação de um padrão estético, como é também sobre a perda da identidade, o racismo, sobre ter que se adequar a características brancas em prol de ser aceita socialmente.
Ressalta-se que, na cenas em que temos de fato um diálogo, o cabelo está sendo cuidado com carinho e respeitado, recebendo o devido valor que sempre mereceu. Há sorrisos, música e as mulheres felizes admirando seus reflexos diante do espelho.
Montagem paralela e Sonoridade
A PARTIR DAQUI, TEREMOS SPOILERS SIGNIFICATIVOS
A diretora faz uso da montagem paralela, trabalhando em duas cenas um contraste de significados socioculturais:
- Na primeira cena, vemos a personagem tendo seus cabelos cuidados com muito carinho. Ela não está maquiada e nem mesmo vestida, mas ainda assim se mostra sorridente e satisfeita com o reflexo que está vendo diante do espelho, transmitindo amor próprio e aceitação.
- Em uma outra cena, temos uma jovem maquiada e bem vestida mexendo nos cabelos, mas seu semblante está sério e seus cabelos ocupam boa parte da visão que a câmera nos dá. Em certo momento, quase não vemos mais o seu rosto, apenas o seu movimento de fazer dos cabelos uma palha de aço para lavar a panelas .
Estas cenas são contrastantes e trazem muito sobre a realidade atual.
Além disso, o uso da sonoridade em ambos os quadros traz maior profundidade ao que está sendo apresentando: se em um primeiro momento escuta-se o som do cabelo crespo sendo penteado e cuidado, no outro tem-se o som do cabelo sendo usado para lavar a panela, uma opressão que ele sofre personificada não somente no ato de usá-lo como bucha, como também na sonoridade apresentada, que é bastante incômoda.
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A ausência de investimentos em obras nacionais
Não é nenhuma novidade: filmes nacionais não possuem os incentivos necessários, mas ainda assim conseguem superar esse fato e serem exaltados em festivais e premiações ao redor do mundo.
E KBELA é mais uma prova disso: o filme participou de vários festivais, como o Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR) e o Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO), em Burkina Faso. Foi até premiado pela Academia Africana de Cinema (AMAA), entre outras premiações e festivais.
A obra foi produzida de forma colaborativa, através de uma vaquinha online, com a contribuição de 117 pessoas em 2015. Isso resultou em um financiamento coletivo de R$ 5 mil reais e o elenco foi convocado pelas redes sociais.
KBELA tem apenas 21 minutos de duração, mas que trazem séculos de história e muito sobre a realidade atual! Aproveite que já chegou até aqui, é só clicar e assistir!
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[…] Certamente, uma campanha que exerce uma violência simbólica muito grande. Agora imagine o que milhões de pessoas de cabelos cacheados e crespos, especialmente as pretas, tiveram que viver por vários anos: produtos e salões de beleza estimulavam o tempo todo o alisamento dos cabelos. Entenda mais sobre esta violência em nossa crítica do curta Kbela. […]