Crítica | “Yellowjackets”: um combo de trauma e nostalgia

Disponível no Paramount+, “Yellowjackets” apresenta uma fábula antropofágica, nostálgica e quase metalinguística sobre traumas.

Lá no longínquo ano de 2017, a Warner Bros. anunciou a pré-produção de uma nova adaptação de Senhor das Moscas, um clássico da literatura inglesa, mas com um porém: em vez de meninos adolescentes soltos em uma ilha paradisíaca enquanto perdem sua humanidade, a obra seria protagonizada por garotas.

A ideia foi massacrada por absolutamente todos os lados.

Houve, é claro, a já esperada dose de comentários misóginos (nada surpreendente em um mundo pós-eleição do Trump e Caça-Fantasmas de 2016). Houve a típica enxurrada de supostos apreciadores da sétima arte vociferando que “hoje em dia nada mais é original, tudo é adaptação ou remake” (Georges Méliès já adaptava Júlio Verne e H.G. Wells em 1902, mas claro, adaptações “brotaram” só no século XXI). Houve, ainda, gente criticando a escolha de uma equipe predominantemente masculina para contar uma história sobre meninas adolescentes. E, por fim, houve ainda quem dissesse que a ideia era totalmente inverossímil pois Senhor das Moscas supostamente seria, em seu âmago, uma narrativa sobre masculinidade tóxica.

Evidente que a enxurrada de críticas (infundadas ou não) fez com que a Warner se acovardasse, engavetando o projeto e retomando a ideia somente dois anos depois, com o anúncio de uma nova adaptação, com elenco masculino e “mais fiel à obra original”, dirigida por Luca Guadagnino.

Felizmente, a roteirista Ashley Lyle e seu marido, o também roteirista Bart Nickerson, enxergaram nas críticas ao projeto da Warner uma fértil fonte de inspiração. Daí surgiu Yellowjackets, série sobre um time de futebol feminino do ensino médio que, em uma viagem para um jogo do outro lado dos EUA, acabam em um acidente aéreo, perdidas por 19 meses em uma floresta no Canadá.

Por mais que tenha um quê familiar de Lost e do próprio Senhor das Moscas, Yellowjackets consegue extrair o que há de melhor nessas duas obras e construir, simultaneamente, uma identidade própria. Enquanto Senhor das Moscas surgiu no contexto da realidade britânica durante o pós-guerra e o início da Guerra Fria; Lost ascendeu na cultura pop no momento crítico do pós-11 de setembro e da Guerra ao Terror empreendida por George Bush.

Em um contexto mais pacífico, porém não menos violento, Yellowjackets surgiu pouco antes da pandemia (os autores tinham o piloto escrito já em 2018, e receberam o sinal verde da emissora Showtime para gravá-lo no fim de 2019, com a produção do resto da temporada congelada no início de 2020), e nem sua narrativa, nem sua produção deixaram de ser afetados por este acontecimento: há uma grande variedade de cenas internas com poucos personagens, a quantidade real de jogadoras presentes no fatídico voo 2525 parece oscilar consideravelmente, e a ausência de maiores flashbacks das protagonistas nos tempos de colégio antes do acidente é sentida.

Porém, a maior questão da série, aquela que é levantada desde o piloto, também é aquela que melhor resume o zeitgeist deste início de década: o que realmente aconteceu com aquelas meninas no período em que ficaram isoladas? Longe da sociedade, quem elas se tornaram?

É com esse questionamento que acompanhamos, desde o piloto, as protagonistas Shauna (Melanie Lynskey e Sophie Nélisse), Taissa (Tawny Cypress e Jasmin Savoy Brown), Misty (Christina Ricci e Samantha Hanratty) e Natalie (Juliette Lewis e Sophie Thatcher) em 1996, tentando sobreviver na floresta canadense, e 25 anos depois, lidando com as mais diversas consequências daquele período de 19 meses isoladas na floresta.

Com a fantástica direção de Karyn Kusama (AEon Flux, Garota Infernal), a fotografia soturna de Julie Kirkwood e a montagem precisa de Plummy Tucker, o episódio piloto é, de longe, o maior destaque da série. Os nove episódios seguintes não são, de forma alguma, ruins; mas a pausa nas gravações devido à pandemia claramente foi um golpe, e os episódios seguintes sem dúvida teriam se beneficiado muito da perspectiva que Kusama parece ter acerca dos personagens em cena, em comparação com os demais diretores (a exemplo do uso genial do Efeito Kuleshov no piloto), e da unidade coesa que uma equipe já mais familiarizada uns com os outros pode proporcionar ao trabalho final (Kirkwood e Tucker são colaboradores recorrentes de Kusama).

Um elemento que chama a atenção em Yellowjackets é, evidentemente, sua ambientação na década de 1990. Alguns detalhes escorregam, e se por desatenção da produção ou de propósito, é difiícil dizer (como, por exemplo, uma lista de filmes e músicas preferidas com datas de lançamento que claramente não batem com as datas dos acontecimentos da narrativa); mas é incrível como a nostalgia aqui se encaixa como uma luva, fazendo talvez pelos anos 90 o que Stranger Things fez pelos anos 80. A trilha sonora, que vai de PJ Harvey e Alanis Morissette até Hole e The Offspring, complementa muito bem a direção de arte, que se esbalda em pôsteres do Nirvana, camisetas dos Pixies, Pearl Jam e Dead Kennedys, e CDs do Green Day. É um deleite para quem cresceu nesta década.

Outro grande feito de Yellowjackets, sem dúvida, é a forma como o trauma das protagonistas é retratado. Todas as contrapartes adultas de Shauna, Misty, Natalie e Taissa atuam muito bem (Lynskey e Ricci foram, inclusive, indicadas ao Emmy de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, respectivamente); mas, para além dos méritos artísticos individuais das intérpretes, a produção soube retratar muito bem essa questão através de pequenos diálogos e da mise-en-scène.

Por exemplo, é notável como Natalie ainda se veste com as mesmas camisetas de bandas e jaquetas de couro que usava na adolescência e segue entregue aos mesmos vícios de antes do acidente, se mostrando incapaz de crescer; ou a forma como Taissa, que é extremamente bem-sucedida mas sofre com sonambulismo e pesadelos, vive com sua família em um apartamento enorme e opulento, mas mal iluminado e sempre meio soturno, coberto por cortinas, tal qual uma representação da própria psique da personagem, que alcançou todos os objetivos que tinha antes da queda do avião, mas que sente como se essas conquistas não fossem reais – como se o trauma fosse um véu encobrindo suas vitórias e impedindo-a de senti-las, assim como as cortinas sempre encobrem a luz em seu lar.

Em tempos, talvez o maior dos feitos desta série seja a construção de Shauna Shipman, a personagem interpretada (brilhantemente) por Melanie Lynskey. A personificação do trauma, Shipman é uma mulher incapaz de superar o luto, e tenta se redimir pelos pecados que cometeu na floresta (e antes dela) ao fagocitar a vida simples, pacata e até entediante que ela apontou, em determinado momento-chave da trama, que outra personagem teria. Esta personagem amava coelhos, e Shauna adorna sua casa (diminuta e já atolada de fotos, cacarecos e pequenos lembretes de uma vida sobrevivida, e de outra passada que ela sente que não aproveitou o suficiente) com coelhos de porcelana, a fim de sempre se lembrar da pessoa que precisou deixar para trás para sobreviver.

É simbólico, portanto, que em determinado ponto, Shauna mate um coelho que aparece em seu quintal, e o sirva para seu marido e sua filha durante o jantar – e que, a partir deste ponto, a personagem comece a tentar viver por si, e não mais pelo peso do luto que carrega e frequentemente usa como desculpa. Fascinante, então, ver uma dona de casa ser a personagem mais perigosa e manipuladora em um quarteto composto por uma política, uma viciada trambiqueira, e uma sociopata, em um exemplo de sinergia tão brilhante entre intérprete e personagem que, arrisco dizer, vimos pouquíssimas vezes na TV.

É uma protagonista feminina à altura de James Gandolfini e seu Tony Soprano – e capaz de entregar a Lynskey, uma grandiosa atriz até então confinada a papéis pequenos em Hollywood, como a Rose de Two and a Half Men, seu merecidíssimo primeiro Emmy.

A série está disponível na íntegra no Paramount+.

Confira o trailer da primeira temporada de Yellowjackets:

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Gabriela Spinola
Gabriela Spinola

Tradutora, mineira, e eternamente emo.

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