Crítica | Visceral, ‘Machines’ retrata realidade ignorada dos que sustentam cadeias produtivas

Longa acerta ao se revelar como uma intensa experiência sensorial, mas deixa um enorme vazio

Na era do neoliberalismo e do capitalismo globalizado, o documentário Machines, do estreante Rahul Jain, é um soco no estômago. De Nova Deli, capital da Índia, Jain viajou para o distante estado de Gujarat, extremo oeste indiano, para mostrar a realidade crua do trabalho superexplorado de migrantes em uma fábrica têxtil. 

Homem sentado sobre maquinário. Cena do documentário Machines
Cena do documentário “Machines”, de Rahul Jain.

Exibido gratuitamente nesta semana no Feed Dog Brasil, o filme foi lançado em 2016 no IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdã. Desde então recebeu a aclamação da crítica especializada, vencendo o World Cinema Documentary Special Jury Award de Melhor Fotografia no Festival Sundance de 2017.

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O longa acerta ao se revelar como uma intensa experiência sensorial. Como uma intrusa, a câmera viaja por um universo laboral insalubre cujos sons são ensurdecedores, os movimentos repetitivos e as belas cores dos tecidos um contraste ao suor dos corpos e sujeira do maquinário. 

Em todos os cantos observamos rostos apáticos e sem expressão de meninos e homens exaustos, mas atentos às suas funções. Não há narração, não há texto. Dentro da fábrica, com pouca iluminação, não sabemos quando o dia começa ou quando termina.

Homens trabalham em fábrica têxtil. Cena do documentário Machines
“Machines” é um retrato da desumanização do trabalho alienado.

“Deus nos deu mãos, então temos que trabalhar”, declara um dos trabalhadores na primeira fala após mais de 10 minutos de filme. Ali, ganham míseros $3 dólares por turno de 12 horas. Além disso, muitos trabalham em dois turnos completos, com apenas 1 hora de intervalo entre eles. Sem contrato ou qualquer seguridade social, recebem o “salário” em dinheiro e nada mais. 

Com escassez de mão de obra e sendo um dos estados mais industrializados da Índia, Gujarat atrai a população mais pobre (principalmente homens) de outras partes do país que migram em busca de emprego. Sem propósito, além de alimentarem suas famílias, eles se submetem a condições degradantes. 

Homem dormindo sobre máquina. Cena do documentário Machines
Em “Machines”, trabalhadores dormem onde podem, quando podem.

Narrativa através da forma

O filme é estruturado sem linearidade e com poucos diálogos. A narrativa é construída através da forma e as cenas falam por si só, muito pelo ótimo trabalho de montagem da veterana Yael Bitton e pela belíssima cinematografia do mexicano Rodrigo Trejo Villanueva. A composição das imagens revela, inclusive, a influência da fotografia documental do brasileiro Sebastião Salgado, forte inspiração para Jain, segundo o próprio diretor

As cenas são propositalmente longas, assim como o trabalho arrastado que observamos. Em certo momento, a câmera insiste em focar em um menino que, exausto, luta para manter os olhos abertos enquanto puxa tecidos. Assim o diretor usa o tempo a seu favor: o suficiente para manter o espectador intrigado, mas não demais para deixá-lo desconfortável, ainda que o desconforto seja um afeto fundamental ao filme.

Para Jain, a intenção era fazer o espectador sentir o intoxicante cheiro da amônia que impregna o ar e, de fato, ele quase consegue. A – não existente – trilha complementa essa sensação. Os constantes ruídos, apitos, alarmes, chiados dão ainda mais peso à experiência visual

Em suma, Machines não quer apenas te contar sobre a miséria do trabalho precarizado, mas te transportar para a rotina crua daqueles trabalhadores. Acompanhar a frieza do cotidiano torna-se uma experiência mais impactante do que seria somente sentimentalizar sua história.

“O que é mesmo a pobreza? A pobreza é uma tortura”

Os raros diálogos do filme costuram a narrativa. Além disso, são o único recurso para dar voz às angústias, reflexões e questionamentos dos trabalhadores, cujos nomes não são revelados.

“O que é mesmo a pobreza? A pobreza é uma tortura”, afirma um deles. As contradições e a ausência de consciência de classe ficam evidentes na fala do homem, que rejeita sua própria condição de exploração. Apesar de entender o abismo que o separa dos ricos, para ele “exploração seria se eu fosse forçado a trabalhar aqui”. Ao mesmo tempo, explica que teve que arrumar empréstimos para viajar 1.600 Km em busca daquele trabalho.

Homem indiano sendo entrevistado em cena do documentário Machines
Apesar de poucos, depoimentos são elemento crucial em “Machines”.

As falas dos trabalhadores expõem, ademais, os efeitos nefastos da política neoliberal que dita a economia da Índia há quase três décadas e que tem sido aprofundada nos últimos anos. Com sua lógica anti-direitos, esse sistema força mulheres e homens a um estado de total impotência, justamente por colocá-los a um passo de perder o mais básico para sua sobrevivência. Como resultado, os faz ceder aos contratantes.

“Nem sei quem é o patrão ou o que ele faz. Conheço o portão da fábrica”, diz outro. Como lutar contra um inimigo sem rosto? Ou melhor, como lutar quando não se sabe quem é o inimigo?

“Por que não fazem nada?”

Em Machines, parece que observamos um mundo paralelo que existe em uma espécie de brecha no espaço-tempo. Contudo, esse não é um mundo paralelo. É o nosso próprio mundo. 

Em um ponto alto do filme, um grupo de trabalhadores na porta da fábrica questiona a equipe do documentário. “Vocês perguntam sobre nossos problemas. Quando contamos a vocês, por que não fazem nada?

Ironicamente, a história pessoal do diretor Rahul Jain se contrasta à dos homens em seu próprio filme. Vindo de uma família burguesa, Jain passou a infância visitando a fábrica têxtil da qual seu avô materno era dono. Entretanto, essa história não é contada no filme e o diretor se mantém afastado da narrativa, cumprindo o papel de mero observador. Dessa forma, Jain não assume ou toma sua parte naquela engrenagem, criada e administrada por sua própria classe.

Trabalhadores encaram câmera em clímax do documentário Machines
Em cena potente, trabalhadores questionam equipe do filme.

Se por um lado o filme executa com mérito tudo aquilo que se propõe a entregar – um trabalho cinematográfico hipnotizante, um mergulho sensorial em um ambiente extremamente hostil e um retrato sobre a superexploração – ainda assim, ele deixa um enorme vazio. 

Não há um esforço para examinar o que causa aquela realidade brutal, tampouco há uma busca por qualquer solução. Segundo o cineasta, ele não estava interessado em oferecer respostas sobre o que é aquele mundo, apenas questionamentos. 

Mas quantas vezes mais temos que assistir ao sofrimento sem nos atentarmos aos porquês? O longa nos faz ver a engrenagem, mas não a encaixa na verdadeira máquina da qual ela pertence: a barbárie capitalista


O documentário Machines está disponível gratuitamente até o dia 21 de dezembro no site do Feed Dog Brasil.

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Talise Rocha
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