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Crítica | Realidades ignoradas em Joyce e BR3 – Curtaflix
Joyce e BR3 estiveram disponíveis no line-up do festival de curtas do Curtaflix e podem surpreender o público.
Dois curtas disponíveis no Curtaflix podem se destacar pela forma crua como mostram as realidades de grupos ignorados pela sociedade: as crianças de periferia e as pessoas trans. Joyce e BR3 são dois curtas distintos, mas mostram sem muitos rodeios o que é ser criança e como corpos trans se relacionam com sexo. Ambos foram curados pela atriz e diretora Ana Clara Cavalcante, que teve um trabalho bem cuidadoso ao escolher os filmes.
Joyce, exibido na sessão Curtas com Crianças que Brilham, dirigido por Caroline Leone, conta a história de uma criança cujo sonho é ser dançarina de TV, enquanto cuida de sua irmã. Um dia, Joyce e sua irmã decidem sair na rua e encontram o rapaz pelo qual a protagonista tem uma secreta paixonite.
O curta pode parecer mostrar um rito de passagem entre a infância e a pré-adolescência, mas nos primeiros segundos, abre margem para o espectador tomar as próprias conclusões sobre como Joyce vive em sua casa.
Na cena de abertura, a protagonista é vista tomando conta de sua irmã enquanto figuras mais velhas se encontram ausentes. Joyce limpa a casa aqui, faz comida ali e em poucos momentos tem chances de brincar como uma criança deveria. Seu único lazer ocorre quando assiste um programa de auditório, mas rapidamente seu pai chega, mandando-a desligar a televisão.
Depois a personagem tira um tempo da sua noite após as tarefas domésticas para passear com a irmã nas ruas. Um passeio normal acaba virando uma leve ansiedade para Joyce quando ela encontra o menino que gosta e vai perseguir o rapaz para entregar um bilhete.
É um curta de quinze minutos que passa rápido, mas instiga o espectador a querer saber cada vez mais da vida desta menina. Ele tem uma atmosfera tão única porque aborda uma vivência mais do que comum para a realidade de crianças periféricas, essa privação de ter uma infância bem explorada e a necessidade de um amadurecimento precoce que se reflete em Joyce.
A direção de Caroline Leone é muito pé no chão, cotidiana, deixando algumas peças em foco para frisar essa maturidade precoce, como uma panela, cascos de cerveja, a vassoura… todos esses objetos ajudam a ditar o tom realista que o filme vai tomar.
Caroline também constrói sua direção mais focada nas expressões faciais de Joyce, mostrando como a personagem internaliza suas emoções, sempre parecendo estar preste a chorar, o que deixa o longa muito mais triste, porque Joyce não tem uma infância bonita e hollywoodiana.
Agora, partindo para BR3, exibido na sessão Curtas Inesquecíveis de Pessoas Negras, que aborda outras vivências periféricas, mas dessa vez mostra a vida de pessoas trans, uma comunidade extremamente marginalizada no Brasil. O curta foi filmado no Complexo da Maré, comunidade do Rio de Janeiro, e mostra as ligações dessas trans com sexo.
A primeira é Kastelany, que chega na casa de uma outra mulher travesti. Já a segunda é a youtuber Mia se preparando para curtir a noite com as amigas. A terceira é Dandara tendo sua primeira vez com Johi, seu namorado.
Em algumas conversas entre Kastelany e Luciana em uma praça, fica no ar que ambas trabalham com prostituição. E no caso de Kastelany, seria sua primeira vez fazendo. Luciana diz para a jovem que ela precisa se acostumar com a realidade, o que leva a menina a fazer um número de dança em praça pública, dando a entender que Kastelany tem planos maiores na vida do que se render à prostituição.
Enquanto isso, Mia abre seu seguimento em um trailer de lanches, comprando um cachorro-quente. Quando se senta para comer, seu crush aparece em uma moto e eles conversam de forma bem casual sobre uma festa na qual irão comparecer. Alguns minutos depois, a personagem aparece e tenta, de forma descontraída, conversar sobre uma experiência sexual frustrada, dando a entender que ela não seria assumida nesse romance.
Já Dandara e Johi protagonizam a parte sensual do curta, uma vez que quase todo o seguimento de ambos é focado na relação sexual que eles irão realizar em questão de segundos. Aqui a direção de Bruno Ribeiro vai mostrar o afeto entre pessoas trans e como é fazer amor dentro de uma relação natural, sem os medos que poderiam ter. Por isso, a forma de abordagem no curta não é sexualizada, é muito pessoal e humanizada, algo raro no cinema em geral. É o sexo entre duas pessoas adultas e sem muitos rodeios.
O filme é muito natural e cotidiano, tanto que parece não haver nenhuma interpretação dentro dele: é tão real que aparenta apenas recriar vida dentro da arte. O curta não aborda corpos trans de forma sexualizada, estereotipada ou até mesmo jocosa com a vivência dessa comunidade. A direção cria arte retratando vidas, mas o que mais chama a atenção dentro do curta é que, assim como Joyce, ele tem muita humanidade.
Ambos os filmes, em conjunto, trazem estes retratos sobre a realidade de pessoas que vivem na periferia, muitas vezes criticados ou debatidos pela forma estereotipada como são abordados na arte mainstream brasileira. Nesses dois filmes, a realidade em conjunto é muito crua, sem nenhum rodeio ou maniqueísmos.
Filmes assim são importantes quando recebem a oportunidade de serem exibidos em festivais, pois por serem independentes, não recebem muito incentivo para repasse ao grande público consumidor de cinema. Além disso, são retratos precisos sobre realidades que não recebem tratamentos decentes muitas vezes.
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