Crítica | “Maria Callas” é observada à distância na cinebiografia de Pablo Larraín

Entre devaneios e realidade, diretor se distancia da soprano no último filme da trilogia "Important Women"
Angelina Jolie interpreta a lendária soprano em “Maria Callas”. 
Foto: Divulgação/Diamond Films

Pablo Larraín é um cineasta que transforma cinebiografias em experiências sensoriais, transcendendo a rigidez dos fatos cronológicos. Em vez de seguir uma reconstrução histórica tradicional, ele se concentra em momentos específicos dos personagens que retrata, mergulhando profundamente na psique e nas questões internas dessas figuras marcantes. Essa abordagem é a essência de sua trilogia “Important Women”, que reúne histórias de mulheres emblemáticas da segunda metade do século XX.

“Jackie” (2016), estrelado por Natalie Portman, acompanha uma semana intensa da vida de Jacqueline Kennedy logo após o assassinato de seu marido, enquanto “Spencer” (2021), estrelado por Kristen Stewart, captura as festividades de fim de ano da família real britânica tendo a Princesa Diana como protagonista. Um grande fã de época, Pablo Larraín traz, dessa vez, sua versão de um pedaço da história da famosa soprano do século XX, a cantora Maria Callas.

Escrito por Steven Knight – que também colaborou com Larraín em “Spencer” (2021) – o roteiro explora a última semana de vida de Maria Callas, em 1977, na cidade de Paris. Interpretada por Angelina Jolie, Maria é mais uma das divas incompreendidas e solitárias que povoam o universo de Larraín. Aqui, ela é apresentada como uma figura que enfrenta a negação pela perda de sua voz, o sentimento de incompreensão dos pares diante de sua tristeza e seu vício em medicamentos. Essa espiral de conflitos internos torna-se o epicentro da narrativa, pois, como a própria Callas afirma, não há vida fora da ópera; a ópera é sua própria vida.

Foto: Divulgação/Diamond Films

Maria, por meio de sua bagagem emocional – seja relacionada à infância, ao casamento fracassado ou ao abandono pelo amante que, mais tarde, se casou com a própria Jackie Kennedy -, é uma dessas artistas que transformava a profundidade de sua dor na própria arte que oferecia ao mundo. Não é de se estranhar que Callas, com sua imensidão vocal, que a levou a ser saudada como “La Divina” e a soprano mais famosa do século XX, seja uma personagem extremamente desafiadora de interpretar.

Angelina Jolie, no entanto, possui uma presença que combina com a figura de diva atribuída à artista. Sob as lentes de 18mm e 35mm de Larraín, a câmera captura com precisão a proximidade necessária para transmitir a dor, o sufoco e a prisão que Jolie incorpora como Maria Callas. Como a própria personagem atesta em certo momento, figuras como ela podem ir e vir para onde quiserem, mas jamais escaparão da órbita que habitam.

Ainda assim, a missão de cantar é, talvez, o maior desafio para Jolie ao interpretar Callas. Afinal, ninguém poderia igualar a capacidade vocal da lendária soprano. Trabalhando ao lado de John Warhurst, responsável por outras cinebiografias musicais, como “Bohemian Rhapsody” (2018), o filme faz uso de uma mixagem que combina a voz de Jolie com a de Callas, após meses de ensaio da atriz. Esse esforço, no entanto, resulta em um ato superficial, cuja fragilidade é evidente. Uma cantora do calibre de Callas trazia consigo uma expressividade intensa, marcada por feições dolorosas e dramáticas em cada nota que interpretava. Esse aspecto, infelizmente, é algo que Jolie, com suas expressões contidas, não consegue capturar em sua totalidade, permanecendo distante da grandiosidade emocional que fazia parte do legado de Callas.

O centro das minhas críticas a Maria Callas não está em Angelina Jolie, mas nas próprias escolhas de Larraín com o filme que fecha sua trilogia. Ao contrário dos antecessores (“Jackie” e “Spencer”), Larraín não se preocupa em exibir a soprano por trás dos palcos e tampouco oferecer a dimensão da importância e do sucesso de Callas em sua obra. Maria, em relação a Jackie e Diana, é uma personagem menos conhecida pelo público. Portanto, apesar de Larraín ter encontrado brechas para criar seus próprios fatos na narrativa e, assim, preencher as lacunas dos livros, ele mesmo se restringiu ao seu papel de fã. Uma narrativa de excessos estilísticos e de escolhas que beiram a gozação, como a inserção de um suposto entrevistador com o mesmo nome do medicamento favorito da soprano.

A Maria de Larraín, para mim, torna-se semelhante à sua Jackie Kennedy, uma figura impossibilitada de se reconectar com o próprio público que a vê em tela, bem diferente do que foi apresentado em “Spencer” (2021). Tanto Natalie Portman quanto Angelina Jolie tornam-se apenas atrizes em tela interpretando outras figuras, e não as próprias figuras – uma artificialidade que rompe com a história que se tenta apresentar. Trata-se, unicamente, de uma performance sobre outra performance.

Foto: Divulgação/Diamond Films

Enquanto caminha pelas ruas de Paris, entre devaneios e realidade, os flashbacks em preto e branco e as filmagens com bordas de câmeras antigas tratam de preencher as lacunas do passado de Callas. Essas voltas ao passado, porém, nos apresentam mais de Callas do que seus próprios momentos cotidianos, nos quais ela parece demonstrar mais fragilidade. Salvo pelas entrevistas ilusórias feitas pelo personagem de Kodi Smit-McPhee, que, por vezes, nos revelam fragmentos íntimos da personagem, nós, espectadores, somos todos observadores de fora da vida de Maria, sem nunca adentrar em seu íntimo. É uma pena, principalmente vindo de um autor que aparenta compreender tão bem o impacto psicológico e emocional das situações que suas protagonistas femininas enfrentam.

No fim, “Maria Callas” parece menos um retrato de uma mulher incompreendida e mais uma projeção de sua própria solidão sobre o espectador, deixando a sensação de que a verdadeira Callas permanece inatingível, perdida para sempre nas sombras da ópera e do olhar distante de quem se tenta entender suas dores sem jamais as tocar de fato.

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Isabella Breve
Isabella Breve

Graduanda em Jornalismo, leitora voraz, amante da Sétima Arte e eternamente fã.

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