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Crítica | Casa da Vó: uma reflexão sobre “O Perigo da História Única”
O que a expressão “o perigo de uma história única” tem a ver com série Casa da Vó?Calma, a gente explica!
Primeiramente, a expressão “o perigo de uma história única” é um discurso bem reflexivo trazido pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em uma palestra no programa TED Talk, que posteriormente tornou-se um livro. A escritora aborda a importância de conhecer o outro lado da história, ao expor sua própria experiência ao longo da vida.
Uma das coisas enfatizadas por ela é a visão enviesada e negativa que se tem sobre os países do continente africano por somente conhecer uma história única: colonização, escravidão, guerras, doenças, fome, dentre outros exemplos muito comuns em nossa sociedade. Ainda, segunda a autora, a história única cria estereótipos, mata e omite as outras histórias tão importantes quanto.
E qual a sua ligação com Casa da Vó?
Já se perguntou por que o preto é comumente visto em posições de subalternidade? Já parou para pensar que geralmente os fatos históricos destacados sobre a pessoa preta envolvem, em sua maioria, a escravidão?
Quem são os pretos na maioria das narrativas que lemos e assistimos? Será que a vida de uma pessoa preta se restringe às consequências impostas pela escravidão e o racismo na sociedade brasileira?
Pois bem, essas perguntas foram só para gerar um aquecimento para o que iremos falar nesta crítica. A série brasileira Casa da Vó (2020) aborda exatamente a outra versão da história que por vezes não enxergamos, tão pouca é produzida pela mídia de forma mais efetiva.
A obra é toda construída, até nos mínimos detalhes, com o objetivo de retratar as outras histórias da pessoa preta. Por meio de um humor ácido e crítico, Casa da Vó busca trazer várias informações importantes sobre a população preta. São tantos conteúdos, insights, gatilhos e fatos relevantes que a narrativa chega a ser educativa e didática, tornando seu consumo muito necessário. Entenda o porquê:
Sobre a Obra
Casa da Vó é dirigida por Licínio Januário e roteirizada por Allex Miranda, Érica Ribeiro, Licínio Januário e Milena Anjos. Além disso, conta com um elenco que é bem a cara da maior parte da população brasileira: Margareth Menezes, Rincon Sapiência, Dum Ice, Jéssica Córes, Dj Pelé, Johnny Klein, Kiara Felippe, Jacy Lima, Sol Menezzes e Cadu Libonati.
A série é reproduzida na Wolo TV, uma plataforma de streaming fundada pelo ator e diretor Licínio Januário em parceria com Leandro Lemos. Possui 5 episódios de aproximadamente 30 min cada.
Ambientada na cidade de São Paulo, a narrativa traz como protagonista Dona Teresa, que é viúva, aposentada, ex-servidora pública e dona de um salão de beleza renomado, localizado no Bairro Jabaquara. Três dos seus quatro netos moram com ela e, com sua ajuda, já que possui boas condições financeiras, tentam conquistar seus sonhos e espaços na sociedade.
“Esta é uma típica casa de uma típica família brasileira”
O primeiro episódio já começa trazendo informações importantes, que simplesmente parecem ser ignoradas quando, comumente, visualizamos em vários âmbitos de nossa sociedade como uma maioria branca. Entretanto, o Brasil é o país com a maior população preta fora da África, pois mais de 50% da população brasileira se declara preta ou parda.
A típica família brasileira é composta por pessoas pretas que não vivem somente em situações de miséria, como também se encontram em outras classes econômicas além das baixas.
Salienta-se que, como diria a própria protagonista: “vocês não estão preparados para isso”. A sociedade brasileira, por vezes, não enxerga as famílias pretas como algo tradicional do país. Não há um retrato disso de forma mais efetiva na mídia, e quando há, tem-se uma resposta bem racista por parte significativa da sociedade.
Um caso real disso é a propaganda do dia dos pais do Boticário de 2018, alvo de comentários racistas por trazer uma família preta.
Poder Aquisitivo
Ao decorrer da narrativa, por meio de vários itens, é mostrado o poder aquisitivo que Teresa e seus familiares possuem: acesso a tecnologia de última geração, como o aparelho celular, a região onde moram, a casa, roupas, o salão e as próprias falas das protagonistas em alguns momentos.
Movimento Black Money
Não é de hoje que vem sendo levantada a questão de darmos mais valor a produtos e serviços estrangeiros e não valorizarmos da mesma forma os nacionais. Isso é abordado de diversas maneiras ao longo dos episódios, frisando principalmente a importância de consumir produtos e serviços oferecidos por empreendedores pretos(as).
O chamado Movimento Black Money foi fundado por Nina Silva e Alan Soares e tem como objetivo promover e fortalecer os negócios de pessoas pretas, além de incentivar o próprio consumidor preto a comprar de pessoas pretas, seguindo a ideia que:
“Aqui no Brasil, mesmo com toda a dívida da escravidão, parece que existem fiscais para impedir que meu povo tenha oportunidades”
Em Casa da Vó, cada um dos netos de Teresa possui profissões e qualificações que geralmente são ocupadas por pessoas não pretas nas narrativas. Tem-se três episódios dedicados aos 3 netos homens, mostrando que apesar de possuírem estabilidade econômica e qualificação, o racismo está muito presente nas empresas, que inclusive não enxergam os pretos em posições de trabalho mais intelectuais e de altos cargos.
Outro ponto retratado é que não importa o quanto o profissional preto seja qualificado e se empenhe, pois muitas vezes uma pessoas branca bem menos capacitada que ela ocupa o espaço que era seu por mérito e esforço.
Outra crítica necessária apresentada na série Casa da vó é o fato de muitas empresas expressarem em sua “missão e valores” que buscam a diversidade, inclusive publicando isso nas redes sociais, entretanto, quando se olha o quadro de funcionários, ele é predominantemente branco e com a presença de profissionais pretos em cargos subalternos.
Marcas, Mídia e o Corpo Preto
Para ter mais liberdade, o diretor traz marcas famosas com outros nomes na trama: TV Mundo (TV Globo), Scutify (Spotify), FleKflix (Netflix), Yubank (Nubank), entre outras.
Critica-se o fato das narrativas audiovisuais da TV Mundo e FleKflix terem significativa presença preta, mas nos mesmos lugares: ladrão, bandido, traficante, etc. Vemos papéis estereotipados, que só reforçam e naturalizam a subalternidade da pessoa preta, ou seja, temos o reforço da história única, aquela que geralmente é mais enfatizada em nossa sociedade.
Inclusive, a nossa matéria “A representação da pessoa negra em narrativas audiovisuais hollywoodianas e brasileiras” aborda isso, pois não basta ter a presença preta, é muito necessária também uma melhor qualidade desta representação.
Outro ponto da série que precisa de destaque é a necessidade de termos senso crítico quando vemos marcas famosas usando pessoas pretas em suas campanhas de publicidade. Se na prática o corpo de funcionários não contém profissionais pretos nos vários cargos, não somente nos baixos, há uma falsa ou fraca representatividade.
“O Sou Chique é a verdadeira cara do Brasil que a TV tem vergonha de mostrar”
O salão de beleza Sou Chique traz um outro problema social: o cabelo crespo e cacheado. Por muito tempo, ele foi domesticado e oprimido, seja pela ausência de representação ou pela quantidade e variedade de opções de produtos e salões com foco em alisá-los, dentre outras formas de violências sofridas, tanto físicas quanto psicológicas.
Violência? Um termo bem pesado, não é mesmo? Entretanto, ele se encaixa bem neste contexto: mesmo quando as mulheres procuram encontrar suas identidades e assumir seus cabelos, o processo de transição é bem complexo e sofrido, algo abordado simbolicamente no curta KBELA.
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O Papel do Personagem Branco
Percebe-se que os personagens brancos têm um papel muito importante de representar esta visão da “história única” que se tem da população preta, seja pela forma como agem, falam ou se comportam. Isso reforça, mais uma vez, o quanto o racismo está enraizado no Brasil.
É válido pontuar aqui que a presença do personagem Bruno é um crítica a todo tipo de conteúdo midiático que possui pessoas brancas diversas e apenas uma preta para trazer a “percepção de diversidade” ou “representação”. E na série Casa da Vó temos esta mesma imagem, mas de forma inversa: todo o elenco principal preto e uma personagem branca.
“Vocês não estão preparados para isso”
Casa da Vó, ao longo dos episódios, aborda várias coisas sobre a cultura negra, desde objetos a várias referências de pessoas pretas importantes: artistas, ativistas, estudiosos, etc. A narrativa dá visibilidade a eles. Além disso, também aborda invenções feitas pelos pretos, acontecimentos e datas comemorativas que se iniciaram pelos descendentes desses povos, como o Natal. Afinal, Jesus não é branco.
Outra crítica feita em Casa da Vó é sobre a própria população preta buscar saber mais sobre os seus, conhecer sobre suas próprias histórias, movimentos e conquistas. Infelizmente, isso não é um tipo de conhecimento instigado socialmente, mas é muito necessário, como abordado por Chimamanda Ngozi Adichie.
Quando reféns da “historia única“, de certa forma não só reproduzimos como também naturalizamos certos comportamentos, contextos e julgamentos que podem ser contra ou desvalorizar nós mesmos e outras pessoas. Assim, impomos determinados lugares que, inclusive, podem ferir direitos e liberdades.
Por fim, uma crítica que a série faz e precisa aqui ser destacada é sobre o consumo de filmes nacionais. Não adianta considerar-se um amante do cinema quando não se tem o mínimo de interesse e respeito por obras brasileiras, especialmente aquelas produzidas por pessoas pretas.
Oportunidades de Melhoria
A personagem Ana teve pouca presença se compararmos com os demais netos da dona Teresa, já que foram dedicados episódios para cada um protagonizar ao lado da avó.
Ana foi a única que não recebeu esse destaque, ficando sempre como coadjuvante das histórias de cada episódio. Tal personagem, assim como Teresa, tem muito a oferecer como representatividade para mulheres pretas e merece seu protagonismo na série, assim como os demais personagens masculinos.
Bom, caro leitor, não sei se as perguntas que foram feitas no início desta crítica foram respondidas, e a ideia é que não fossem mesmo, mas talvez ou com certeza você poderá encontrá-las ou refletir mais sobre assistindo a série Casa da Vó!
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