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Crítica | “Ainda Estou Aqui” é cinema brasileiro como ato de resistência e memória
“Aqueles que não conhecem a história, estão fadados a repeti-la” é uma máxima que frequentemente ressurge para nos lembrar dos horrores de um passado que marcou tanto a história mundial quanto a brasileira. Constantemente, nos deparamos com líderes políticos e indivíduos cujos discursos autoritários e extremistas ecoam uma herança totalitária que a nação contemporânea ainda carrega. É nesse terreno de esquecimento que o cinema assume o papel de materializar a memória, lembrando-nos constantemente de um passado que ainda se faz presente e, sobretudo, para que nunca nos esqueçamos.
“Ainda Estou Aqui” é uma dessas produções que, ao abordar a memória e denunciar os horrores da Ditadura Militar Brasileira, tem conquistado prêmios internacionais e chamado a atenção do público ao redor do mundo. Recentemente, foi selecionado pela Academia Brasileira de Cinema para disputar uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, colocando o cinema brasileiro de volta no radar mundial.
Sua repercussão internacional se justifica facilmente pela imersão estética, narrativa e dolorosa no Brasil Ditatorial de Walter Salles, uma obra inspirada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro) e Rubens Paiva (Selton Mello). O filme narra a vivência da família no contexto histórico, cultural e social da época, apresentando a amarga história de um passado-presente que nos assombra, com o sequestro de Rubens Paiva, ex-líder político, pela Ditadura Militar, de quem nunca mais se teve notícias, e nos desdobramentos da família Paiva sob a perspectiva de Eunice, a matriarca.
A vida de comercial de margarina, a praia e a casa sempre cheia são elementos que definem o cotidiano inabalável da família Paiva, livre de problemas financeiros ou conjugais. Essa felicidade, no entanto, é interrompida ocasionalmente pelo som dos helicópteros sobrevoando, pelas notícias na televisão sobre o desaparecimento de outro político, e pelos militares que, volta e meia, marcham em frente à praia. À medida que essa atmosfera de bem-estar é mostrada, somos surpreendidos junto com Eunice no dia em que Rubens é levado pelos militares para prestar depoimento – e nunca mais retorna.
Os dias ensolarados, as risadas e o amor que envolvem a rotina da família Paiva rapidamente se dissolvem em um ambiente marcado pelo irrespondível e pela impunidade, que agora passam a definir sua história. De forma contida, Salles nos apresenta fotografias, filmagens e arquivos da Ditadura, sem jamais transformar o filme em uma abordagem apelativa ou voltada unicamente para fins comerciais.
De dona de casa a chefe da família, Fernanda Torres dá vida a Eunice Paiva, sustentando sua personagem com uma força inabalável. Eunice é uma mulher que não tem tempo para sentir pena de si mesma, chorar diante dos filhos ou demonstrar fraqueza. Enquanto o silenciamento sobre o desaparecimento de Rubens ecoa pelo país, ela se cala perante os filhos, forçada a se redescobrir nesse novo mundo. Fernanda Torres, como uma verdadeira força da natureza, domina com maestria os artifícios que seu papel exige.
A família Paiva, em certo momento, se torna a nossa própria família, nossa própria história, em uma narrativa que pertence a todos nós. É um lembrete poderoso para que nunca nos esqueçamos daqueles que foram torturados ou vitimados, de diversas formas, durante os Anos de Chumbo. Por meio de um cinema que atua como intermediador dessas questões, o filme resgata de forma imersiva e sensível o Brasil daquela época.
O caminho tomado por Salles se materializa por meio de um componente sentimental, uma dor facilmente reconhecível pelo público, especialmente pelos brasileiros, pois é a nossa própria história que está sendo retratada na tela. A tensão, a militância e o sofrimento são meticulosamente trabalhados através de Eunice, sua família e a casa que habitam. A casa respira junto com a família, e vê-la vazia, em determinado momento da narrativa, simboliza o vazio deixado por aquele período, não apenas na família Paiva, mas em muitas outras espalhadas pelo Brasil. Em certo ponto, nos damos conta de que aquela poderia muito bem ser nossa própria história pessoal, vivida por nós ou por nossos familiares.
Eunice, por sua vez, transforma sua dor em resistência, recusando que as capas de revista retratem sua família de forma melancólica e rejeitando a ajuda financeira de amigos que a cercam. Ela está determinada a construir seu próprio caminho, a guiar e sustentar os passos e o futuro de sua família por conta própria, sem depender de ninguém.
Posteriormente, o filme avança para o fim dos anos 90, quando Eunice se torna uma célebre advogada e ativista dos direitos humanos. Recuperando sua eterna essência de resiliência e suas dolorosas micro expressões, é com um sorriso contido que Eunice recebe o atestado de óbito de Rubens, carregando o peso de finalmente dar respostas àqueles que, como ela, viveram anos sem qualquer vestígio. No desfecho, Fernanda Montenegro surge em cena com uma atuação breve, mas de impacto duradouro, algo que só ela, como brasileira, poderia transmitir com tamanha profundidade.
Volta e meia, me peguei imersa naquela narrativa, emocionada do início ao fim, refletindo sobre a beleza do cinema como reconstrutor da memória coletiva. “Ainda Estou Aqui” é, antes de tudo, um filme para os brasileiros – uma história dolorosa de uma família cujo sonho foi transformado em pesadelo por um governo totalitarista. É uma lembrança viva de que, afinal, a democracia é o que temos de mais precioso. De certo modo, é a maior chance do Brasil em décadas nas premiações internacionais. No entanto, independentemente de quantas estatuetas conquiste, sua existência já é nossa maior vitória.
Confira o trailer de “Ainda Estou Aqui”:
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