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Crítica | “A Substância” é body horror que satiriza os padrões estéticos em uma versão grotesca e asfixiante
Hollywood opera como uma máquina que aniquila a imagem das mulheres. O ato de envelhecer, para elas, carrega um significado diametralmente oposto ao que se observa nos homens; enquanto a velhice é frequentemente celebrada entre eles, para as mulheres ela é rapidamente submersa nas areias do esquecimento. Seus corpos são reduzidos a meros objetos, uma vez que a indústria exige das futuras estrelas não apenas uma aparência impecável, mas também a perpetuação da juventude. Clara Bow, assim como tantas outras, enfrentou um destino similar ao atingir a maturidade, partilhando o mesmo desfecho de milhares de atrizes.
O novo filme de Coralie Fargeat é sobre tudo isso. “A Substância” é uma enxurrada de golpes viscerais que não dá trégua. Embora a narrativa de Coralie transite entre ficção científica, fantasia e horror, ela reflete uma realidade com a qual as mulheres facilmente se reconhecem. Em seu trabalho anterior, “Vingança” (2017), Fargeat já demonstrava sua habilidade criativa ao explorar uma narrativa de exageros autorais, abordando questões que, em essência, impactam as mulheres com maior intensidade.
A montagem que abre “A Substância” é uma síntese de tudo o que será trabalhado durante as 2h20 minutos de longa-metragem: a inserção de uma nova estrela na calçada da fama que, tomada pelo tempo, vai tornando-se decadente, destruída, com seu glamour destruído pela sujeira e a comida que caí no chão.
Com Demi Moore no papel principal, “A Substância” narra a trajetória de Elisabeth Sparkle, uma atriz de Hollywood que, ao envelhecer, é relegada ao esquecimento – uma narrativa que ressoa com as experiências de Jane Fonda, da própria Moore e de muitas outras. Imersa em um ostracismo interminável, Sparkle apresenta um programa de ginástica sob a supervisão de um chefe caricatural que personifica os estereótipos da masculinidade tóxica. Nesse cenário, ela é gradualmente deixada de lado na busca por uma nova figura mais jovem para ocupar seu espaço. É nesse contexto que Sparkle é introduzida a uma substância que promete restaurar tudo o que um dia foi: jovem, perfeita e bela. Tudo, é claro, através da ótica masculina. Assim, ela dá à luz a uma versão mais jovem de si mesma, nomeada por “Sue” (Margaret Qualley). Contudo, há uma condição: elas são uma só e dependem uma da outra para sobreviver.
Ainda que, nos últimos anos, a temática tenha se tornado recorrente, em grande parte devido aos eventos desencadeados pela crescente repercussão e discussão do movimento #MeToo, mas que já era retratada em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), Fargeat consegue infundir uma nova perspectiva à problemática por meio de sua narrativa autoral e exagerada. Ao incorporar elementos do body horror, ela cria um efeito angustiante que se intensifica a cada ato. No primeiro, apresenta-se uma narrativa repleta de possibilidades de desenrolamentos; no entanto, são nos atos subsequentes que “A Substância” encontra sua voz e estilo, explorando a busca pela perfeição que se transforma em monstruosidade, uma sátira que exige estômago do espectador.
Com as regras da substância estabelecidas de forma eficaz, que merecem ser descobertas na sala de cinema, a versão matriz de Sparkle enfrenta progressivamente as consequências de suas desobediências, tornando-se, assim, rival de si mesma. Enquanto Sparkle se sente excluída, diminuída e horrorizada pelo envelhecimento, Sue representa tudo o que ela almeja: uma versão jovem que atrai os olhares masculinos e é obcecada pelo sucesso viável graças à sua juventude. Consequentemente, a sua própria “eu” mais jovem torna-se uma obsessão para Elisabeth, agindo como um obstáculo que a impede de se aventurar na vida marcada pelo tempo.
Ao se apropriar do body horror, a direção avança com uma velocidade incessante, apresentando um design que evoca tanto o incômodo quanto o desejo sufocante de comunicar uma miríade de ideias. Nesse sentido, “A Substância” utiliza intencionalmente o male gaze, manifestando-se por meio de closes desconfortáveis em partes do corpo feminino, câmera lenta, texturas e ângulos exploratórios. Essa abordagem critica de forma incisiva a fantasia masculina do espectador, revelando uma estrutura hegemônica que permeia o cinema hollywoodiano.
Enquanto Elisabeth simboliza a condição das mulheres, Sue transforma-se no fetiche masculino, e o proprietário da emissora assume o papel de seu controlador. Ambas, subordinadas à aprovação masculina, se submetem a condições absurdas que, gradualmente, as corroem. Dessa forma, Elisabeth é colocada em uma posição cada vez mais isolada, enquanto a possibilidade de retroceder se torna irremediavelmente tardia. Contudo, mesmo quando Elisabeth tem a rara oportunidade de se dar uma chance ao ser convidada para um encontro, ela sempre se depara com a imagem de Sue em um outdoor e retorna ao banheiro para retocar a maquiagem, o cabelo e mudar a roupa. Gradualmente, suas inseguranças são expostas de maneira visceral, refletindo a sombra de uma imagem que jamais será a sua, revelando a realidade de uma mulher condicionada a odiar a si mesma, independentemente das circunstâncias.
Confira o trailer de “A Substância”:
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